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Salvador, outubro de 2009
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Gabriel Soares de Sousa: pequena Trágico-Marítima

Francisco Ferreira de Lima

Resumo

O lado visível do Império — de todo Império — é a sua espetacularidade, sem a qual não há demonstração de força. As armas são as mais poderosas e seus soldados, imbatíveis. Há, contudo, um outro lado do Império, construído sobre dor e morte, que tende a ser escondido. Quando isso não é possível, transforma-se ele também em espetáculo, base de reagenciamento da força imperial. É o que o artigo pretende desenvolver.
Palavras-chaves: Século XVI; literatura de viagem; império

ABSTRACT
The visible side of an empire — of every empire — is its specularity, without which theis no demonstration of power. The weapons are the mosto powerful and their soldiers, unbeatable. There is, however, another side of empires, constructed on pain and death,which is generally concealed. When that is not possible, it also becomesa spectacle itself, basis for the remanangment of the imperial force.
Key-words: XVIth century; travel literature; empire



Embora menos cantada – é próprio dos homens escondê-lo – a dor é companheira inseparável do júbilo na construção e manutenção do Império, sejam quais forem tempo e lugar. E não será preciso ir fundo na memória para o comprovarmos. Basta retomarmos a data mais emblemática dos tempos recentes: o 11 de setembro de 2001, quando o vizinho do Norte viu literalmente ruir suas duas “torres de orgulho” – para lembrar o título do hoje clássico ensaio de Barbara Tuchman.

Acontecido o impensável, cujas imagens, nesses tempos ditos pós-modernos, não mais se distinguiam dos filmes B hollywoodianos, a arrogância do Império volveu-se paranóia. E de tal ordem que nem mesmo o massacre de milhares de cidadãos do país miserável no qual presumivelmente se escondia o agressor, boa parte deles constituída por velhos, mulheres e crianças, foi o suficiente para amainá-la. Para amainá-la, repita-se, pois nada a fará desaparecer – pode-se acrescentar num exercício de macabra futurologia –, porque seu fundamento reside no fato de que o Império, uma vez devassado, coisa inconcebível para si próprio, voltará a sê-lo a qualquer momento e em qualquer circunstância. O ex bunker social sabe-se agora um dique pleno de fissuras, através das quais podem passar de aviões a bactérias – sem falar nos milhares de esfomeados a cruzar ilegalmente suas fronteiras, ameaçando arraigadas matrizes do seu imaginário, dentre elas a supremacia branca.
Por muito tempo, assim, bem mais do que se possa imaginar, cada “outro” – mais uns que outros, é verdade – será, ainda que não o seja, o inimigo potencial do gigante amedrontado, pagando, na forma de sua dura lei, o preço da suspeita, dilatada pelo medo pânico.

Minado, o gigante amedrontado precisa redobrar seus esforços quanto a sua capacidade de reação, de modo a fazer crer-se ainda mais poderoso, posto que fortalecido pelo sofrimento. A demonstração de força ganha ainda mais espetacularidade. E a dor transforma-se numa espécie de empréstimo, a ser saldado pelo júbilo da vitória contra o mal.

Júbilo e dor estiveram também congeminados na construção e manutenção do, visto de hoje, mambembe império português. Segundo Charles Boxer (1992: 217), um dos mais minuciosos leitores da expansão ultramarina portuguesa, num curto período por ele estudado – seis anos apenas – da primeira metade do século XVII, de um soma de cinco mil, duzentas e vinte e oito embarcadiços com destino à ìndia morreram exatamente dois mil setecentos e trinta e três, ou seja, 52% do total. Isso numa época na qual a carreira da Índia já era rota absolutamente familiar aos nautas portugueses, pois já a percorriam há longos dois séculos. E tais números não se deviam a quaisquer contratempos inesperados ou catástrofes aterradoras; eram, pelo contrário, cifras rotineiras, em concerto com os padrões de normalidade vigentes. Tratava-se apenas do preço, em vidas, a pagar pelas viagens aos camonianos mares nunca de antes navegados, mesmo que esse “de antes” já há muito tempo fosse um “depois”.

A bem dizer, tal ceifa em vidas, seja qual for o número, deve ser entendida como uma necessidade vital, talvez seja melhor dizer uma necessidade mortal, do Império. Trata-se de uma, se assim se deve dizer, morte ritualística, verdadeiro exercício de canibalismo, através da qual o Império chora, como em Pessoa (1972: 81), “Ó mar salgado, quanto do teu sal/são lágrimas de Portugal” e, com o choro, refaz suas forças no fortalecimento de uma espécie de mitologia de auto-imolação, de caráter martirológico, a impulsioná-lo para frente: “Quem quer passar além do Bojador/tem que passar além da dor”, como dirá o mesmo poeta no mesmo poema. A morte é, pois, base primeira para a vida do Império. E assim é porque este é o único meio de ele fazer-se grande e vivo: canibalizando, desfeito em remorso, os seus para canibalizar o “outro”, sem remorso nenhum.

No que se refere ao imaginário imperial português, podem-se encontrar referências a essa dor que engrandece o júbilo da conquista em quase todos os autores que trataram desta última, mesmo daqueles para quem conquistar é apenas motivo de regozijo, como já se verá adiante com Gabriel Soares de Sousa, nosso autor em questão. Mas em nenhum outro lugar toda sua intensa dramaticidade estará tão exposta como na História Trágico-Marítima, a compilação de relatos de naufrágios e desventuras organizada por Bernardo Gomes de Brito em 1735, que reúne as mais pungentes histórias do avesso do Império, quando o fracasso, o medo e a derrota substituem a arrogância da invencibilidade, permitindo ver em dramática panorâmica o quão débil – porque humanos – são seus agentes.

Tome-se para ilustração o mais conhecido de todos eles, o relato “da mui notável perda do galeão São João, em que se contam os grandes trabalhos e lastimosas cousas que aconteceram ao capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e sua mulher e filhos e toda a mais gente houveram na terra do Natal, onde se perderam a 24 de junho de 1552”.

Não seria de todo inapropriado se nos detivéssemos, ainda que de passagem, no título do relato, aliás, bem ao gosto daqueles tempos, o qual, não bastasse a retórica esfuziante de adjetivos (grandes, lastimosas, lamentável), carrega duas trágicas ironias. No primeiro caso, trata-se da coincidência entre o nome da embarcação e o dia do naufrágio, confluência que instaura um perfeito simbolismo do fim, como se previsto em outra e alta esfera.

Fizessem o que fizessem, aquelas pobres almas estavam condenadas à morte, parece apontar a infeliz relação, que faz o nome de um santo reverenciado pelo que promove em alegria aparecer em duplo aviso de morte. No segundo caso, há que observar o sublime no nome do lugar: “terra do Natal”, uma vez nome e lugar da salvação, agora, lugar e nome da perdição.

Como se sabe, dentre as primeiras tarefas impostas a um Império está a de renomear o mundo, de modo a incluí-lo em seu universo de significação, posto que nunca se interessa por nada que não compreenda. Assim, à apropriação material propriamente dita, precede a apropriação simbólica do território no qual a primeira se vai efetivar. E o renomear, claro, implica seleção criteriosa de nomes, aquilo que se tem de melhor, uma vez que se trata de, na lógica imperial, fundar efetivamente um mundo novo, fundação que se dá antes na e através da linguagem.

E para um mundo novo, nada menos que a única novidade do mundo velho, a natividade, o Natal, marco zero de um novo tempo, no qual a humanidade, perdida em trevas, houve de achar-se na luz desse nascituro, que veio ao mundo para mostrar o caminho da salvação. Caminho, agora, retraçado, em seu Nome pelo Império, cujos objetivos são os mesmos: fazer espalhar-se a Sua verdade, de modo a fazer o mundo nela espelhar-se.

Contudo, ao ver, a imagem invertida no espelho ante si próprio, isto é, o Natal como perdição ao invés de salvação; o “São João”, na embarcação e no calendário, como sinal vivo da morte, restará ao Império, nas figuras de alguns de seus mais eminentes agentes, apenas a dor de saber-se frágil, descobrindo, bem antes de um certo jagunço, que, abandonado por Deus e pelos homens a sua própria sorte, o que existe de fato é só homem humano, cujo único desejo é manter-se vivo.

Um rápido passeio pelo corpo do relato não mostrará coisa diferente. Ali ficamos a saber que se tratava de um contingente de quinhentas pessoas, nem todas iguais, já bem se sabe, pois o narrador faz questão – essas coisas próprias de todo Império – de diferenciar os duzentos “portugueses” dos trezentos “escravos”; contingente esse, aliás, logo reduzido em cento e dez vidas, que se perderam quando a nau partiu-se ao meio na tentativa de aproximar-se da terra. Após a recuperação dos feridos, forma-se uma caravana para demandar “terra de cristãos”, mais exatamente – o Império e suas fantasias nominalistas! – a aguada da Boa Paz.

Daí em diante, apesar dos nomes, a viagem ganha estatuto de peregrinação, no sentido mais popular do termo, na qual os peregrinos empreendem uma verdadeira descida aos infernos, numa sucessão de episódios funestos, cada um mais ameaçador que outro, como a submetê-los a uma prova de fé, sem que haja, já se sabe, possibilidade de recompensa pelo esforço praticado, pois a boa paz nunca virá. Aqui é a perda de um filho do próprio Sepúlveda, que, fraco de fome, vai perigosamente sendo deixado para trás, sem que se possa, para desespero do pai, ir buscá-lo quando se descobre sua ausência, dado que a caravana é seguida de perto por outra, composta de serpentes, tigres e leões famintos, sempre à espreita de retardatários. Ali são as asperezas do caminho, a obrigá-los a “subir serras mui altas”, descer outras de “grandíssimo perigo”, sempre acossados pela fome e sede, que vão dizimando drasticamente a companhia. Mais adiante, seis meses depois de desencontrada errância, é o assalto final dos cafres, os nativos, os quais, astutos e maliciosos, com sói ocorrer com essa gente, se aproveitam da fraqueza misturada à loucura dos portugueses para ludibriá-los numa negociação, deixando-os desarmados.

Mas a degradação ainda estava por completar-se: todos são deixados nus em pêlo, seguramente a mais emblemática humilhação sofrida pela alta linhagem do Império.
Com efeito, desde o primeiro dos primeiros dos viajantes – e certamente ninguém haverá de ter-se esquecido de Caminha e seus olhos ávidos por vergonhas, sem vergonha nenhuma expostas –, dentre os elementos fundamentais a marcar a diferença entre civilização e barbárie, a nudez é o mais chocante de todos, uma vez que repõe o homem numa esfera da qual a roupa o faz esquecer-se de tê-la habitado um dia. O choque, pois, não é tanto de ver o outro nu como o ver-se a si nele, desfazendo-se nesse gesto, séculos e séculos de cadeia evolutiva e de refinamento civilizacional.

Não é outro o choque provocado pela nudez compulsória a que se vêem obrigados Sepúlveda e seus (agora) poucos seguidores. Sem aquilo que os identifica como diferentes, resta-lhes, mais que uma não-identidade – releve-se o forçado da expressão – uma desidentidade, no dizer aflito de Brito (1998: 20): “E como já não levavam figura de homens (...), iam sem ordem, por desvairados caminhos; uns por mato e outros por serras (...), e já então cada um não curava mais que fazer aquilo em que lhe parecia que podia salvar a vida”.

Nesse contexto, o desfecho não surpreende: Dona Leonor, a fidalga senhora Sepúlveda, depois de resistir, brava mas inutilmente, a ser despida, enterra-se na areia, preferindo a morte à nudez. Depois de velá-la até o último suspiro, pois dali ela nunca mais arredará, ocasião em que também lhe morreu o último filho, e já agora de todo insano, Sepúlveda “meteu-se pelo mato, e nunca mais o viram” (Brito, 1998:21), como diz, com muito pesar, o narrador, ciente da dimensão da tragédia.

Evidentemente não se encontrará em Gabriel Soares de Sousa dramaticidade semelhante, mas bem se pode mapear ao longo do seu Tratado Descritivo do Brasil uma pequena Trágico-Marítima com o mesmo objetivo dessa outra: legitimar a vida do Império na morte de seus ilustres agentes, tão bem sumarizado no verso de Pessoa, atrás citado, que nunca é demais repetir: “Quem quer passar além do Bojador / tem que passar além da dor”.

O Tratado..., “tirado a limpo” para persuadir Felipe II de Espanha e I de Portugal a financiar uma expedição ao São Francisco, é um exaustivo levantamento do Brasil, do Amazonas à “ponta do rio da Prata”, num rigoroso exercício de pantometria, de que nada escapa. O efeito, só superado nos tempos modernos, é a mais abrangente compilação de dados corográficos, botânicos e zoológicos – para não falar nos etnográficos, históricos e geográficos – do Brasil em seus primeiros dias.

Como já se demonstrou, para compor esse pioneiro retrato do Brasil, Soares de Sousa se utiliza de duas estratégias retóricas distintas: na primeira, com o fito de deslumbrar o rei, arrola o elenco de maravilhas que caracteriza o Brasil. É terra tão incrivelmente grandiosa, que em tudo excede às conhecidas, as melhores delas, ressalte-se. Mas – e essa é a segunda estratégia –, ao lado de tais “lembranças”, agora com a intenção de levar o rei a agir rapidamente, expõe-se, as mais das vezes de maneira bombástica, o conjunto de ameaças iminentes a que o Brasil está exposto, sejam as de caráter externo, sejam aquelas outras internas, ambas, todavia, demandando intervenção urgente.

Perdido o Brasil – é do que Soares de Sousa pretende convencer o rei –, não se perderá apenas parte do Império, mas um repositório único de impressionantes maravilhas, preservado à custa de sangue, lágrimas e suores de seus filhos, os quais perderam suas vidas no mar, nas garras das feras ou ante as pontas das lanças dos índios para dilatá-lo – a ele e a fé.

É impossível aceitar, pois, que tal esforço tenha sido em vão. Daí a necessidade de seu registro, de maneira a fixar para o todo e sempre, o quão amargo é o drama da fundação de um Império assim como os “trabalhos” para sua manutenção.

São muitos os exemplos dados por Soares de Sousa a merecer análise. Observemos alguns poucos mais de perto. Comecemos pelo episódio relativo aos filhos de João de Barros, o grande historiador da expansão imperial portuguesa.



Vindo ao Brasil para tomar posse da Capitania do pai (pois este, ao que consta, tinha horror a viajar), naufragaram nas costas do Maranhão. Salvos do naufrágio, “passaram muitos trabalhos”, até ser resgatados anos depois por uma das muitas naus que seu devotado pai continuara a enviar em seu socorro “por sua conta (...) sem desta despesa lhe resultar nenhum proveito” (51), como faz questão de marcar o autor. Tal ressalva, aliás, tem função importante na narrativa, pois não só aponta a grandeza de caráter daquela ilustre personagem, na qual avulta a incansável labuta de um pai que tem nos filhos sua maior riqueza, como deixa patentes os riscos da empresa imperial – em vida e fortuna, esta última entendida em seus dois sentidos, antigo e moderno.

E não é de graça que as vicissitudes vividas por João de Barros e seus filhos mereçam tanta atenção por parte de Soares de Sousa – ele a elas se refere em pelo menos duas ocasiões, a primeira na página 46 e a segunda, de modo mais detido, na 51. Trata-se, como Camões, de uma outra daquelas grandes personagens do século XVI, cuja obra, mais do que contar do, criou um Império, a partir da sobretaxa de ficção imposta ao real. Nesse caso, contudo, não é o autor que conta, mas o ator que, ao participar diretamente da aventura, acrescentará uma dose de pungência a sua obra: não é um aventureiro anônimo e ganancioso qualquer, a lamentar-se de um golpe do azar; é, antes, o grande historiador da expansão vivendo na pele (e no bolso) o drama sobre o qual escreve, de modo a poder, antes de Pessoa, fingir a dor veramente sentida, para provar em sua própria carne que o Império é maior que qualquer homem, até mesmo seu criador.

E foi, é o que se deve concluir, o que apurou João de Barros. Após todos esses revezes, felizmente os filhos “se vieram a este Reino”, com o que ele pôde dedicar-se a sua aventura predileta e bem menos arriscada, a de criar o Império em palavras, no conforto de seu gabinete, cercado pelo carinho familiar.

Apresentado o homem de Letras, é preciso fazer o mesmo com o da religião, quanto mais não seja por se tratar de profissional vocacionado para o martírio:

“Aqui se perdeu o bispo do Brasil, D. Pedro Fernandes Sardinha, com sua nau vinda da Bahia para Lisboa, em a qual vinha Antônio Cardoso de Barros, provedor-mor que fora do Brasil, e dois cônegos e duas mulheres honradas e casadas, muitos homens nobres e outra muita gente, que seriam mais de cem pessoas brancas, afora escravos, a qual escapou toda deste naufrágio, mas não do gentio caeté, que neste tempo senhoreava esta costa da boca deste rio de São Francisco até o da Paraíba; depois que estes caetés roubaram este bispo e toda esta gente de quanto salvaram, os despiram e amarraram a bom recado, e pouco a pouco os foram matando e comendo, sem escapar mais que dois índios da Bahia com um português que sabia a língua.” (61)

Como se estivéssemos diante de uma página da grande Trágico-Marítima, podemos acompanhar em imagens nítidas o desdobrar-se do sacrifício do Império: primeiro é o naufrágio, tragédia suficiente em si mesma, posto que o mar, túmulo construído em sal e lágrimas, faz-se morada habitual dos que ousam desafiá-lo, como bem dizia o Mostrengo de Pessoa. Ter dele escapado, todavia – o que em outra circunstância seria o máximo a desejar – constitui aqui tão-somente uma espécie de ante-sala de um palácio de horrores, como a demonstrar o caráter inesgotável desses padecimentos. Com efeito, os ilustres agentes do Império, que, como já se viu, gente de menor importância não conta, vão defrontar a mais temível de todas as práticas da barbárie: o canibalismo, inscrito secularmente no imaginário europeu, e aqui apresentado em lento ritual de tortura – se lemos esse “pouco a pouco” trazido à cena do texto em seu pleno efeito retórico.

O ato, medonho em si mesmo, ganha dimensão de sacrilégio, uma vez que atinge um representante de Deus (daqueles mesmos que em outros ares andavam queimando desafetos, mas isso é outra história), ultrapassando, pois, a barreira das coisas atinentes ao mundo humano, para inserir-se no universo das práticas demoníacas, que afinal o dito cujo, em sua infinita capacidade de travestir-se, está sempre à espera do momento apropriado para desmoralizar as forças do Bem.

Com a introdução desse elemento sobrenatural, a morte ganha, assim, estatuto de martírio, a ser registrado nos anais das dores e lágrimas, que hão de gerar de parte a parte tantas outras lágrimas, dores e mortes sem as quais o Império não sabe nem pode viver.

A fome de vida, contudo, não se resolve na desaparição dos nobres. Insaciável, ela requer volume, traduzido em grandes números, pois a glória da conquista assenta-se na medida do sacrifício despendido, o qual ganhará multiplicada densidade dramática, com vistas a justificar o reagenciamento das forças imperiais. Para tanto, porém, é preciso expor as dores à exaustão.

“De Jacuípe a Arambepe, são duas léguas onde se perdeu a nau Santa Clara, que ia para a Índia, estando sobre amarra, e foi tanto o tempo que sobreveio, que a fez ir à caceia, que foi forçado cortarem-lhe o mastro grande, o que não bastou para se remediar, e os oficiais da nau, desconfiados da salvação, sendo meia-noite, deram à vela do traquete para ancorarem em terra e salvarem as vidas, o que lhes sucedeu pelo contrário; porque sendo esta costa toda limpa, afastada dos arrecifes, foram varar por cima de uma laje, não se sabendo outra de Pernambuco até a Bahia, a qual laje está um tiro de falcão ao mar dos arrecifes, onde se esta nau fez em pedaços, e morreram neste naufrágio passante de trezentos homens, com Luís de Alter de Andrade, que ia por capitão”. (71)

Observe-se, por exemplo, o efeito de teatralização da dor no uso da palavra “passante” no excerto acima. Não são trezentos nem trezentos e vinte e sete ou trezentos e cinqüenta e três os mortos. Não são um número exato. Ao contrário, são “passante” de trezentos, o que joga o número numa indefinição a ser recoberta pela imaginação do leitor, segundo sua sensibilidade e predisposição para o trágico.

Esse pequeno exemplário de padecimentos, porém, ficaria incompleto se não se referisse o fato de que o próprio Gabriel Soares de Sousa pagou com a vida o preço do sonho imperial. Vindo de Madrid em 1591, com a autorização para procurar ouro nas nascentes do São Francisco, morreu às margens do rio Paraguaçu, próximo ao lugar onde, sete anos antes, desaparecera seu irmão, vítima da mesma busca e da mesma cobiça. História que ele, infelizmente, já não pode dramatizar, uma vez que se deu ele próprio em sacrifício ritualístico, sem o que o império – nenhum império – se justifica perante si mesmo e “o outro” com tal.
______________


(1) A celebração do São João, no Hemisfério Norte, vincula-se à passagem do dia mais longo do ano, que marca, por sua vez, a chegada do solstício de Verão.


REFERÊNCIAS

BOXER, Charles. R. (1992). O império marítimo português. Lisboa, Edições 70.
BRITO, Bernardo Gomes de (compilação de) (1998). História Trágico-marítima. Rio de Janeiro, Lacerda/Contraponto.
PESSOA, Fernando (1972). Obra poética. Rio de Janeiro, Aguillar.
SOUSA, Gabriel Soares de (1851/1987) Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo, Companhia Editora Nacional.

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Arquitetura neogótica: imagens da mais bela livraria da Europa

J. Lorea

SUMÁRIO
Passeio iconográfico pelo interior de uma das mais bonitas livrarias da Velha Europa, acompanhado de texto explicativo.
Palavras chave: iconografia; arquitetura; livraria

SUMMARY
Pictorial tour through the interior of one of the most beautiful bookstores in Old Europe, accompanied by explanatory text.
Keywords: iconography, architecture, library


Em 1881 foi fundada a Sociedade José Pinto Souza Lello & Irmão, mais tarde (1919) designada de Livraria Lello & Irmão. O edifício construído em 1906, ao estilo neogótico, é da autoria do engenheiro Xavier Esteves. No interior merecem especial atenção a decoração em gesso pintado a imitar madeira, a escada de acesso ao piso superior ­– uma das primeiras construções de cimento armado do Porto, bem como o grande vitral existente no teto, que ostenta o monograma e a divisa da Livraria: Decus in Labore. O sentido da frase evoca a dignidade no trabalho com os livros, ressaltada pelos seus fundadores.

O edifício da chamada Livraria Chardron, depois Livraria Lello & Irmão, está situada na Rua das Carmelitas, nº 144, no Porto, Portugal.

É uma livraria com uma velha história que remonta a 1869 quando foi fundada na Rua dos Clérigos com o nome de Livraria Internacional Ernesto Chardron. Com a morte deste e depois de várias negociações, foi reaberta como Livraria Lello & Irmão como referência a seus livreiros, nome que permanece até hoje. Foi inaugurada a 13 de janeiro de 1906.

A Lello & Irmão, neo-gótica e modernista, é famosa no mundo inteiro e um dos ícones de uma cidade com grande tradição literária.

É também lugar de peregrinação habitual para letrados, e tem sido qualificada como a mais bela do mundo. A decoração, feita a base de madeiras talhadas, filigranas e de múltiplos detalhes dotados de encanto antigo, conseguem um ambiente de época indiscutível que enamora qualquer amante não só de livros mas também de história, de arte e de arquitetura.

Também recomendo ver com calma as estantes repletas de livros que refletem as cores irisadas dos vitrais das paredes e dos tetos. Foi no edifício desta livraria que foram rodadas cenas do conhecido filme Harry Potter. Estar neste espaço nos transporta a outras épocas passadas. No teto uma cúpula de cristal, dota o ambiente de magia, permitindo a entrada de uma deliciosa luz natural perfeita para a leitura.

Descrita por como a mais bonita do mundo, em 2008 o periódico inglês The Guardian considerou-a a terceira mais bela.

No assoalho de madeira de lei, os trilhos contornam o espaço onde circulava um pequeno vagão carregando os livros.



HISTÓRIA

No dia 13 de Janeiro de 1906, por volta do meio-dia, a baixa portuense acotovelava-se para ver as individualidades mais destacadas das Letras portuguesas, professores universitários, artistas, jornalistas, homens políticos e comerciantes do Porto, entre os familiares dos proprietários da Livraria Lello e Xavier Esteves, autor do projeto do edifício a inaugurar, todos dirigindo-se para o interior daquela casa, onde se procederia à solenidade de abertura. Presentes figuras como Guerra Junqueiro, Abel Botelho, João Grave, Bento Carqueja e muitos outros.

Depois do congraçamento e de palavras elogiosas proferidas aos editores livreiros, Abel Botelho deixou registrado o seu testemunho no Livro de Ouro da livraria, que se revelou premonitório: «...erigir um tão formoso templo ao divino culto da Emoção e da Idéia, é um grande ato de benemerência, e que, pelos seus largos e fecundos resultados, há-de ligar perduravelmente os nomes Lello & Irmão
ao reconhecimento nacional».

A história da livraria Lello remonta a 1869, ano em que é fundada na Rua dos Clérigos a Livraria Internacional de Ernesto Chardron. Após o imprevisto falecimento de Chardron, aos 45 anos de idade, a casa editora foi vendida à firma Lugan & Genelioux Sucessores. Em 1894 Mathieux Lugan vendia a Livraria Chardron a José Pinto de Sousa Lello que possuía então uma livraria na Rua do Almada. Associado ao irmão, António Lello, mantêm a Livraria Chardron, com a razão social de José Pinto de Sousa Lello & Irmão, até 1919, ano em que o nome da sociedade muda para Lello & Irmão Ltda
.Este verdadeiro ex-líbris da cidade atravessou o século XX, geração após geração, nas mãos da mesma família.

Em 1995, José Manuel Lello decide realizar uma profunda transformação no interior da livraria, cuja herança, segundo as suas palavras, lhe «trazia não só um passado de ricas tradições mas também a exigência de fazer perdurar esse ideal de amor pelos livros, que se traduziu na edificação de uma obra arquitetônica única no mundo». O trabalho de restauro e de adaptação às atuais formas de uso foi entregue ao arquiteto Vasco Morais Soares.

Entrando hoje no interior da livraria, o visitante sente-se envolvido por um ambiente acolhedor, onde pontificam os livros e uma decoração impressiva. Uma vasta sala, com uma galeria que dá acesso a um escada ornamental, onde correm algumas mesas que servem para exposição dos livros. Bancos em madeira e revestidos a couro e estantes a toda a altura desta sala perfazem o espaço interior próprio de uma livraria atual, mas que guarda a memória do passado. Nos pilares, à esquerda e à direita, distinguem-se os bustos de distintos homens de letras: Eça de Queirós, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Tomás Ribeiro, Teófilo Braga e Guerra Junqueiro. O teto, lavrado, resguarda no centro uma luminosidade diáfana que provém do amplo vitral em que se desenha o ex-libris de Lello & Irmão Ltda.

Como foi escrito, no princípio do século passado, a riqueza de tons do grande vitral, o recorte gracioso das janelas, a balaustrada da galeria e os grandes candelabros situados nos ângulos que demarcam esse espaço, as lindas ogivas que se entrelaçam no teto sob os florões e que vêm morrer nas nervuras que correm pelos pilares até às mísulas, deixam o visitante deslumbrado.A mesma admiração suscita a fachada em estilo neogótico, formada por um amplo arco abatido, cuja entrada se divide numa porta central, ladeada por duas montras.Sobre este arco há uma janela tripla, fechada na platibanda e separada das pilastras, as quais são encimadas por coruchéus originais. Dos lados da janela, destacam-se duas figuras pintadas, da autoria de José Bielman, simbolizando uma a Arte e a outra a Ciência. O resto da fachada completa-se com ornamentação fitográfica e com o nome da livraria. De realçar o rendilhado que encima o edifício, todo ele um monumento artístico que já mereceu classificação de património nacional.


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Uma paralelo entre o estudo das perversões e Lolita, de Nabokov

Diana Lemos Fraga


RESUMO
A perversão interessa a todos uma vez que se faz presente na dinâmica do desejo, ao qual não se pode nem sequer escapar. Segundo Freud, não só toda perversão é sexual como sua origem está inscrita no desenvolvimento da sexualidade dita normal. Estudo do problema, tomando como referência o romance Lolita, de Vladimir Nabocov.
Palavras-chave: Perversão; Freud; Sexualidade

ABSTRACT
The subject of perversion is of interest to us all, since it is present in the dynamics of desire, of which no one can escape. According to Freud, not only every perversion is sexual but its origin is inscribed in the development of the so-called normal sexuality. This article presents a study of the problem, taking as reference the novel Lolita, by Vladimir Nabocov.
Keywords: Perversion; Freud; Sexuality

INTRODUÇÃO

A compreensão de perversão é, na maioria das vezes, comprometida por um julgamento moral da sociedade, o que expressa uma inconsistência compreendida pelo não embasamento teórico. Pode-se dizer que a mídia também possui uma parcela da responsabilidade de deturpação do termo na medida em que, costumeiramente, associa este à idéia de iniqüidade. É comum a confusão entre perversão e perversidade, até mesmo pelo fato de existir apenas uma palavra para designar o sujeito que comete perversidades e que sofre de perversão no tocante às pulsões.

Uma discussão um tanto mais profunda sobre perversões demanda uma apreciação do conceito psicanalítico do termo. Por conseguinte, no presente trabalho, procura-se formular uma sínese da concepção freudiana a respeito do tema e dar enfoque a certos conceitos que permitem o estabelecimento de um paralelo com o romance Lolita, de Vladimir Nabocov. Fez-se necessária uma pesquisa, na obra de Freud e em diferentes autores, não restrita apenas às perversões, mas a respeito de outros conceitos como o das pulsões, da castração e do recalcamento, para que, a partir de então, fosse possível uma mínima elucidação do complexo tema.

A perversão é uma questão que interessa a todos nós, uma vez que se faz presente ao menos na dinâmica do desejo, ao qual não se pode (nem se quer) escapar. Segundo Freud, não só toda perversão é sexual como sua origem está inscrita no desenvolvimento da sexualidade dita normal. Sua abordagem da teoria da sexualidade, em 1905, iria promover uma atualização sobre o tema, como suscitar diversas discussões principalmente em razão da teoria da sexualidade infantil, a qual não se assumia nem se aceitava. Freud viria escandalizar a sociedade com a afirmação de que não só a criança possui uma sexualidade, como esta é perversa. De acordo com uma lógica simples: se a infância é uma fase universal para todos os seres humanos, a perversão sexual com certeza está ou, para aqueles que insistem em negar nuances perversas em si mesmo, já esteve presente no inegável desenvolvimento sexual de todos os indivíduos.

A idéia de traçar um paralelo entre as teorias freudianas e o livro Lolita se explica por diversos motivos. Em primeiro lugar, a pedofilia é um desvio quanto ao objeto sexual que deve ser tratado com um cuidado particular, uma vez que afeta profundamente a moral da estrutura da sociedade ocidental. Relacionamentos amorosos e mesmo casamentos entre pessoas com uma grande diferença de idade pode ser facilmente citada, está presente em obras célebres da literatura mundial:

“Beatriz tinha nove anos, quando fez palpitar o coração de Dante; Laura tinha apenas doze anos (como Lolita), quando inspirou a Petrarca um dos seus mais belos sonetos. Os célebres amantes Romeu e Julieta, da tragédia shakespeariana, não fogem a essa estranha condição: a bela Capuleto não tinha mais de treze anos quando se entregou ao amante proibido. Edgard Allan Poe já era maduro quando se casou com uma menina de quatorze.” (Silveira, 1970, Aba 1 do livro Lolita)

Mas não é preciso irmos tão longe. Em nosso país, há algumas décadas, era muito comum e perfeitamente aceitável o casamento entre homens maduros e adolescentes. Felizmente, nos dias atuais, há uma maior discussão em torno da preservação dos direitos e integridade física e moral da criança e do adolescente, muito embora saibamos que ainda há inegáveis abusos e lastimosa impunidade sobre a questão. Contudo, não cabe aqui uma análise profunda do descaso e abandono quanto às crianças e adolescentes – não apenas na esfera da pedofilia, mas de explorações em geral – especialmente em países de terceiro mundo (que, a propósito, não é o caso de Lolita).

O romance de Vladimir Nabokov tornou-se um clássico da literatu-ra contemporânea e foi posteriormente filmado pelo célebre diretor Stanley Kubrick. Promoveu uma retomada de um tema tão antigo quanto polêmico, devido a sua competência estilística literária, de maneira inovadora. Não se propõe, na obra, uma condenação, mas a exposição do amor, desejo, manipulação, adoração, e mesmo obsessão de um homem vivido por uma púbere.


"FREUD EXPLICA?"
OU: EM NOME DO PAI

As perversões são apresentadas por Freud, em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, no capítulo “As aberrações sexuais”, como atividades sexuais que ou não se limitam às regiões do corpo destinadas à cópula – genitais –, ou se demoram exageradamente em fases preliminares da relação sexual que deveriam ser ultrapassadas a fim de se atingir o objetivo sexual final.

Existem algumas observações e fatores essenciais para o estudo e compreensão das perversões. A repugnância é um fator importante para a definição de um objetivo sexual como perversão. O sexo anal é, portanto, um exemplo do desvio, uma vez que o anus não apenas é uma região não destinada à união sexual, mas também possui uma função fisiológica da qual desde cedo aprende-se a relacionar com a idéia de nojo. É interessante notar, também, que os fatores que impedem ou dificultam a realização do objetivo sexual final irão favorecer uma maior demora em atividades preparatórias, de modo que estas podem se configurar como novos objetivos sexuais, sendo possível terminarem por tomar o lugar do objetivo normal. A escopofilia é uma perversão por esse motivo, mas existem outros aspectos que também contribuem, como, por exemplo, a superação da repugnância e a satisfação obtida pelo ato de olhar restrita às genitais. Ainda quanto ao abandono do objetivo sexual normal, deve-se mencionar o fetichismo. Nesse caso, o interesse em relação ao objeto sexual se transfere de forma exagerada para uma parte do corpo que não é apropriada para finalidades sexuais, ou para um objeto inanimado que tenha alguma relação com a pessoa que ele substituiu, como uma peça de roupa,por exemplo.

Vale a pena destacar, ainda, a que talvez seja a mais comum de todas as perversões, o sadismo. É o desejo e prazer obtido por infligir dor a alguém; pode também voltar-se para o próprio eu, caracterizando o masoquismo. Nestas situações, encontram-se, marcadamente, formas diversas de humilhação e sujeição. Caracteriza uma patologia, assim como os demais desvios, quando se expressa de maneira exagerada, ou seja, quando a satisfação sexual fica condicionada à humilhação e sofrimento do outro (ou de si mesmo, no caso do masoquismo).

Devo chamar a atenção para a distinção que existe entre um traço ou atitude perversa que pode estar presente em qualquer tipo de indivíduo, e atos e estrutura psíquica perversos que compõem uma patologia propriamente dita. É fácil constatar que certas extensões que constituem as perversões estão presentes na vida sexual de pessoas sadias e não obrigatoriamente são julgadas por elas como acontecimentos tão absurdos e diferentes de outros. Freud, a respeito disso, escreveu:

“Nenhuma pessoa sadia, ao que parece, pode deixa de adicionar alguma coisa capaz de ser chamada de perversa ao objetivo sexual normal, e a universalidade desta conclusão é em si insuficiente para mostrar quão inadequado é usar a palavra perversão como um termo de censura.” (Freud, 1905, p.163)

Percebe-se em casos efetivamente patológicos de perversão uma capacidade de a pulsão sexual superar as resistências do nojo, da moral, da dor e da vergonha. São essas resistências que restringem a pulsão sexual a certos limites em pessoas normais. Entretanto, mesmo indivíduos que se comportam dessa maneira podem, em outras situações que não as sexuais, apresentar uma conduta normal. Apenas quando uma perversão tem caráter de exclusividade e fixação em vez de simplesmente se pôr ao lado do objetivo sexual normal é que se pode considerá-la um sintoma patológico.

Como se sabe, a respeito das neuroses, os sintomas histéricos são substitutos de processos mentais que, devido ao recalcamento, foram impedidos de ser descarregados numa atividade psíquica consciente. A força dos processos mentais recalcados, acreditava Freud, possuía origem na pulsão sexual. Entretanto, a vida do neurótico apresenta um antagonismo constante: “anseio sexual exagerado e aversão excessiva à sexualidade.” (Freud,1905, p.167) A doença é, portanto, uma forma de escape às pressões da pulsão e a aversão à sexualidade. Freud inclusive afirma categoricamente que no inconsciente de todos os neuróticos existem impulsos de inversão; e mais, é raro que em casos característicos de psiconeuroses apenas uma pulsão perversa se desenvolva.

A maioria dos psiconeuróticos só adoecem após a puberdade, em decorrência das exigências da vida sexual real. Pode acontecer também de as doenças aparecerem mais tarde, quando a libido não é mais satisfeita pelas vias sexuais normais. O que interessa é que, em ambos os casos, é freqüente o aparecimento da perversão como forma alternativa de a libido ser satisfeita. Ainda sobre a sexualidade dos neuróticos, Freud afirma que esta permaneceu num estágio infantil ou, por um ou outro motivo, foi trazida de volta a este estágio.

A respeito dessa regressão à sexualidade infantil, Joël Dor nos dá uma análise elucidativa. A pulsão sexual, conclui Freud, é formada por diversos componentes que, no caso das perversões, se dissociam. Surge, então, a noção de pulsão parcial:

“Nos neuróticos, como na criança, as pulsões parciais dialetizam o conjunto da dinâmica sexual. É porque a sexualidade perversa está sujeita à influência das pulsões parciais que a famosa sexualidade polimorfa é instituída diretamente no centro da organização sexual infantil.” (Dor, 1987, p.78)

Outros objetos e objetivos sexuais, diferentes dos normais, são impostos na infância devido ao funcionamento dos componentes parciais da pulsão sexual, por isso a sexualidade da criança é necessariamente perversa. Esses componentes da pulsão deverão, na puberdade, se organizar, deixando de mostrar a autonomia característica da fase infantil e irá se eleger uma primazia pela região genital. Isso, entretanto, pode não acontecer, e essas pulsões parciais podem ser manifestadas na vida sexual adulta normal sob a forma do prazer preliminar, sendo esta uma tendência perversa. Pode-se então compreender porque se considera que as perversões resultam de uma regressão: os perversos voltam a um estágio da evolução libidinal que é característica da infância e, aí, permanecem fixados.

Passamos agora para o artigo de Freud “Uma criança é espancada: uma contribuição para o estudo da origem das perversões”. Freud constatou ser freqüente em histéricos e neuróticos obsessivos que procuravam tratamento analítico relatos de fantasias em que uma criança é espancada – surgem antes da idade escolar. No clímax dessa situação imaginada, ocorre, quase sempre, uma satisfação masturbatória. Isso acontece, a princípio, voluntariamente, mais tarde, entretanto, é comum a fantasia surgir a despeito dos esforços do indivíduo em contrário, o que possui características de uma obsessão.

Uma sensação de prazer reveste essa fantasia, possibilitando uma satisfação auto-erótica. Quando esse tipo de satisfação que surge no início da infância é mantida, pode-se falar, segundo Freud, de uma característica primária de perversão.

“Um dos componentes da função sexual desenvolveu-se, ao que parece, à frente do resto, tornou-se prematuramente independente, sofreu uma fixação, sendo por isso afastada dos processos posteriores de desenvolvimento, e , dessa forma, dá evidência de uma constituição peculiar e anormal no indivíduo.”(Freud, 1919, p.228).

Essa perversão não necessariamente irá persistir por toda a vida, poderá, adiante, ser recalcada, ser substituída por um sintoma ou mesmo se transformar por meio da sublimação.

As fantasias de espancamento se desenvolvem por três fases. Na primeira delas, marcada pelo sadismo, nunca a pessoa espancada é a própria autora da fantasia e, comumente, é seu pai quem espanca. A segunda fase, considerada por Freud como a mais importante, assume um caráter masoquista em função do sentimento de culpa, então, o próprio autor da fantasia é espancado por seu pai, estando presente uma carga libidinal. Evidencia-se no período em que surgem essas fantasias uma agitação do complexo paternal – destacam-se aí as meninas, nas quais as afeições estão fixadas no pai. A terceira fase da fantasia volta a ser sádica. Uma perversão dessas, com origem na infância, pode se estender e servir de base para uma perversão de sentido semelhante na vida sexual adulta do paciente.

Vale ressaltar, mais uma vez, que Freud enfatiza a influência da segunda fase da fantasia de espancamento para as meninas. Esta fase possui uma importância genital e, contrariamente às demais, é recalcada, desenvolvendo-se como um desejo incestuoso em relação ao pai. O que não significa que não existem casos de fantasias infantis masculinas de espancamento. Inclusive estas podem resultar em pessoas pervertidas sexualmente.

Julguei conveniente dar segmento ao trabalho que me propus – estudo das perversões e um paralelo com o livro Lolita – após estas breves considerações por considerá-las a base essencial para a compreensão das perversões.

“Lolita, luz de minha vida, fogo de meu lombo. Meu pecado, minha alma. Lolita: a ponta da língua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca, a fim de bater de leve, no terceiro, de encontro aos dentes. LO. LI. TA.” (Nabocov, 1955, p.7)

Assim começa a confissão do amargurado Humbert. Nos toma, sem que tenhamos como nos defender, e nos leva a admirar, ou repudiar, sua adoração pela jovem Dolores. E Vladmir Nabokov não teria seu mais famoso livro se não fosse Dolores jovem demais. Em 1955, Nabokov lança seu livro, uma trama que não é estranha à literatura ou à vida cotidiana, mas que foi recebido com grande impacto. Lolita escandalizou e apaixonou o público por se tratar de um livro que expõe o amor, ou desejo sexual, de um homem maduro por uma menina de doze anos.

Em “As aberrações sexuais”, Freud põe em questão algumas idéias que a opinião popular tem acerca da pulsão sexual: a sexualidade infantil, o objeto e objetivo sexuais.

A pedofilia chama a atenção por parecer ao observador um caso indubitavelmente patológico e aberrante, ao passo que outras variações quanto ao objeto não inspiram tal radicalização. É o caso das inversões, no qual o objeto sexual do indivíduo pertence não ao sexo oposto, mas a pes-soas de seu próprio sexo. Um invertido pode ser reconhecido como completamente normal em outros aspectos. Da mesma forma, desvios quanto ao objetivo sexual são bastante tolerados e estão presentes na vida íntima da grande maioria das pessoas.

“Por outro lado, casos em que pessoas sexualmente imaturas (crianças) são escolhidas como objetos sexuais, são imediatamente consideradas aberrações esporádicas. É só excepcionalmente que as crianças constituem objetos sexuais exclusivos. Desempenham esse papel, geralmente, quando se trata de um indivíduo covarde ou que ficou impotente, que as adota como substituto, ou quando uma pulsão urgente (que não pode ser adiada) não pode se apoderar de qualquer objeto mais apropriado.” (Freud, 1905, p.149)

Acontece, pois, que nossa personagem, peculiarmente, faz parte da exceção que adota crianças como objetos sexuais exclusivos, o que torna o caso ainda mais polêmico. Certamente que a perversão de Humbert Humbert não se manifestava por impotência ou incapacidade sua de seduzir mulheres, pelo contrario, é um homem bem apessoado e agradável, de acordo com sua, um tanto pretensiosa, auto-avaliação:

“Permita-me o leitor repetir com tranqüila ênfase: eu era, e ainda sou, apesar de mes malheurs, um homem excepcionalmente belo; lento de movimentos, alto, com cabelos escuros e sedosos e um certo ar sombrio e, por isso mesmo, tanto mais sedutor. A virilidade excepcional reflete com freqüência nos traços exibíveis um certo quê de insociável e congestionado que pertence ao que se tem de ocultar. E esse era o meu caso. Eu bem sabia – ai de mim! – que poderia obter com um estalar de dedos qualquer mulher adulta que escolhesse; na verdade, adquirira o hábito de não ser demasiado atencioso para com as mulheres receoso de que elas caíssem, como uma fruta madura, em minhas mãos.” (Nabocov, 1955, p.25)

Humbert, entretanto, admite, a despeito de seus atributos físicos, su-as dificuldades quanto a vida sexual. Ele supõe que seus problemas provavelmente se devem a uma frustração sua na infância, mas que em nada nos acrescenta no tocante a sua relação com seus pais. Em referência a estes, não manifesta nenhuma recordação desagradável ou intensa. Sabe-se apenas que é órfão materno desde os três anos de idade, diz recordar-se quase nada de sua mãe e refere-se a ela simplesmente como “muito fotogênica”. Sobre lembranças de infância de seu pai, escreve carinhosamente:

“Ele, mon cher petit papa, levava-me a passear de bote e de bicicleta, ensinava-me a nadar, mergulhar e andar de esqui aquático, lia-me Dom Quixote e Os Miseráveis, e eu adorava-o, respeitava-o e sentia-me alegre por ele, sempre que ouvia a criadagem comentar as suas várias amizades femininas, criaturas belas e bondosas que se interes-savam muito por mim, arrulhavam e derramavam lágrimas preciosas ante a minha alegre orfandade.” (Nabocov, 1955, p.9)

O trauma de infância ao qual ele atribui, em grande parte, a origem de sua perversão é o frustrado romance que viveu num verão, aos treze anos, com uma bela menina de mesma idade, Annabel. Com ela experimentou uma intensa e desajeitada paixão, como só se pode experimentar nesta idade. Humbert indaga-se se teria sido aquele verão o desencadeador de sua doença, ou se fora seu “excessivo desejo por aquela criança apenas a primeira manifestação de uma imensa singularidade”. O certo é que relata ter o fatídico verão, após o qual Annabel tragicamente morreu, se tornado um obstáculo a qualquer novo romance durante todos os anos de sua juventude.

A personagem afirma ser capaz de manter uma relação sexual com uma mulher, mas não demonstra nenhuma exacerbação libidinal quanto a isso: “Em minhas relações sanitárias com mulheres, eu era prático, irônico e rápido.” (Nabocov, 1955, p.15) Chegou, inclusive, a se casar, mas é extremamente frio ao concluir que o fez por sua própria segurança. Esforçava-se ao máximo por encontrar mulheres que lembrassem meninas, destaca a sua esposa e uma prostituta parisiense.

A discussão do que se estabelecia ao lado da obsessão deste homem por Dolores é, para muitos, relevante. No decorrer da leitura, nota-se cla-ramente o amor, e mesmo adoração, que ele nutria pela menina, muito embora seja inquestionável o explícito teor sexual de suas intenções. Algumas pessoas acreditam que seu amor por Lolita de alguma forma legiti-ma, ou ao menos atenua, a sordidez com a qual conduz seu envolvimento com a jovem – chegando a casar-se com a mãe, apenas para ter por perto e sob algum controle a filha. Porém, deve-se ressaltar que Humbert delineia toda a trajetória do desenvolvimento de sua perversão, teoricamente surgida com Annabel e sofridamente reprimida (não no sentido de recal-cada) durante longos anos de sua vida, mas sempre a torturá-lo, até eclodir da forma mais intensa ao conhecer Dolores.

Sua perturbação era reconhecida conscientemente, mas não era aceita sem sofridas tentativas de suprimí-la. Dos vinte aos trinta e poucos anos, conta ele, não conseguia entender completamente seus paroxismos. Sua pulsão sexual era explicitamente voltada para crianças, entretanto, não admitia isso de maneira natural. “Ora me sentia envergonhado e assustado, ora inquietamente otimista.” (Nabocov, 1955, p.18) Às vezes convencia-se de que suas fantasias apenas não eram algo doentio, mas que transitar das idéias para o ato, sim, constituiria uma depravação.

É interessante a seletividade quanto às crianças que elegia ao lugar de objeto de desejo. Enganamo-nos em pensar que todo e qualquer menor o atraía. Em primeiro lugar, interessavam-lhe apenas as meninas, mas argu-menta que mesmo aí existe uma diferença enorme. O que o anatomista designaria como feminino, ele subdividia em duas classes que lhe pareciam tão distintas quanto dois sexos: as crianças normais e as nymphets (dos nove aos quatorze anos). Não pretendo me demorar muito neste termo que se popularizou a partir deste livro, mas considero peculiar o requinte de Humbert ao discriminar um grupo de garotas das demais. Diz sempre ter possuído o máximo respeito pelas crianças comuns, com sua pureza e vulnerabilidade.

Algumas afirmações de H.H. nos remetem à tão comum manifestação de perversões em neuróticos. Ele diz ter, durante anos, mantido relações normais com mulheres maduras e, a despeito de sua concupiscência por todas as nymphets, nunca ousava delas se aproximar. As mulheres com as quais lhe era permitido ter relações eram meramente agentes paliativos. Demonstra intenso emprego emocional quando fala de suas fantasias, que, como já mencionei, até então não eram satisfeitas: “O mais vago de meus sonhos polutivos era mil vezes mais deslumbrante do que todo o adultério que o mais viril e genial escritor ou o impotente mais talentoso poderia imaginar. Meu mundo estava dividido.” (Nabocov, 1955, p.18)

Há trechos em que nossa personagem demonstra aproveitar-se de certas circunstâncias, como a amizade que fizera com assistentes sociais e psicoterapeutas e que possibilitavam acesso a instituições como orfanatos e reformatórios. Nestes, como revela Humbert, meninas púberes podiam ser fitadas com total despudor e impunidade, o que o fazia lembrar o que só é concedido em sonhos. A renúncia a qual Humbert se obrigou durante anos de sua vida, portanto, talvez possa ser explicada simplesmente pelo receio de ser preso e condenado. Se não lhe pesasse o medo da punição, provavelmente ele não teria passado tantos anos reprimindo seu desejo.

Já foi mencionado que, a princípio, ele não se sentia confortável diante de sua atração por crianças. A questão é se esse desconforto, e mesmo a vergonha que sentia, não teria origem simplesmente na certeza de que a pedofilia não é algo socialmente aceito, que há aí uma interdição e que ele sofreria duras conseqüências se, inconsequentemente, transgredisse a lei.

Nesse momento de análise do livro, acredito ser de extrema importância que nós nos voltemos para alguns conceitos-chave que a psicanálise nos proporciona e que nos auxiliarão no estudo das perversões. Em sua análise sobre o fetichismo, Freud conclui que, como também acontece nas psicoses, há uma recusa da realidade. No fetichismo existe a recusa da ausência do pênis na mãe, na mulher. Tal como no complexo de castração vivido na infância (nota-se aí uma regressão), admitir que a mãe ou que as mulheres não possuem pênis remete o indivíduo ao medo de poder, ele também, vir a ser castrado. O indivíduo não pode deixar de perceber a ausência física de um pênis na mulher, mas se entrega à convicção oposta. Neste impasse, a saída é o pensamento operar segundo as leis do inconsciente; o homem irá eleger um substituto para o pênis – uma parte do corpo ou algum outro objeto para o qual irá voltar seus interesses. O sujeito, portanto, cria o fetiche para destruir a prova da possibilidade de castração, afastando, dessa maneira, o medo desta.

Como se sabe, na neurose, o processo de defesa em operação é o recalcamento. No caso dos perversos, o que opera é a recusa, que se caracteriza, como se viu, por um paradoxo psíquico – crenças que sobrevivem em contradição da experiência. Apesar de termos trabalhado o exemplo do fetichismo, Freud assinala que o paradoxismo eminente da recusa não é exclusivo dos fetichistas, mas dos perversos em geral. É compreensível, portanto, ser comum o pensamento do tipo “eu sei, mas assim mesmo...”. Proponho fazermos aqui uma extensão desse pensamento para as leis jurídicas, como também morais e culturais. Não seria de surpreender que o perverso, diante de uma interdição, se comporte dessa maneira: “eu sei que não se pode, mas, mesmo assim, o farei”.

Volto agora ao ponto em que paramos. Humbert sabia que não podia ter relações com suas nymphets, e durante alguns muitos anos de sua vida realmente não as teve. Entretanto, se considerarmos também as situa-ções em que gozava em olhar, sem censura, para crianças nos orfanatos e reformatórios, o deleite ao qual se entregava ao fitar meninas brincando nos parques e displicentemente se aproximando dele e mesmo o tocando, podemos construir aqui um suposto discurso seu: “sei que é errado, mas, assim mesmo, meu gozo é em função dessas nymphets”.

Talvez seja de bom proveito analisarmos uma peculiaridade para a qual algumas pessoas não estão atentas ou mesmo consideram irrelevante no julgamento da conduta de Humbert Humbert. Ele era um professor de línguas, vindo da velha Europa, perturbado, para a jovem América. Lolita era uma típica garota americana. Apesar de seus doze anos, percebe-se que, em alguns aspectos, ela era sexualmente mais experiente que ele, ao menos mais do que ele esperava. O fato é que Lolita possuía não apenas a curiosidade sexual típica da puberdade, mas uma sensualidade natural, de modo que são claras suas sedutoras e joviais investidas.
Fica evidente no romance que a relação de Dolores com a mãe não era das mais bem resolvidas. Havia uma competitividade, talvez meramente típica da idade, da parte dela e uma impaciência enorme por parte de sua mãe. A menina parecia divertir-se em chamar a atenção de Humbert fosse ou não para provocar sua mãe, esta demonstrava comprometedora afeição pelo culto professor de línguas.

Pode parecer que está se tentando, a partir de tais argumentos, transferir uma suposta culpa à menina, a fim de atenuar a responsabilidade de Humbert. Esclareço, desde já, as reais intenções. Nos casos em que H.H. nos relata de suas experiências com crianças, era marcante sua posição superior, seja como autoridade por ser professor, ou, no caso do orfanato, por não haver ali ninguém que o censurasse. Era de se esperar que ele, como de costume nas relações entre adultos e crianças, sempre assumisse o controle. Acontecia, no entanto, que Lolita possuía o poder de muitas vezes desarmar Humbert, de desprovê-lo de meios que o permitissem sujeitá-la a seus, frequentemente mórbidos, desejos. O que acontecia era o oposto, ela conseguia manipular as situações, fazendo com que H.H. cedesse a seus caprichos. Tudo isso poderia se explicar, talvez, pela paixão que Humbert insiste, ao longo do livro, em ressaltar.

É verdade, todavia, que o comportamento de humbert vai mudar bastante a partir do momento em que sua esposa, mãe de Lolita, morre e ele assume a tutela da menina. Em verdade, praticamente a seqüestra e a afasta de qualquer conhecido seu. Inicia-se aí uma longa viagem pelas estradas dos Estados Unidos, quando se desenvolve, de fato, o relacionamento sexual dos dois. Humbert, então, vive numa inconstância, oscila em ser amável, cuidadoso e gentil, e subjugá-la. Manipula Dolores por meio de ameaças – de que, se ela não aceitasse viver com ele, iria para um reformatório –, de “subornos”, e chega, inclusive, a roubar suas míseras e-conomias, segundo sua defesa, por medo de uma tentativa de fuga. Sua morbidez se impõe, agora, com toda força e ele desenvolve uma possessividade sufocante, a qual Lolita não pode, somado aos outros tão óbvios motivos, suportar. O sofrimento da pequena Dolly é gritante e a morbidez da situação na qual ela assume uma posição passiva é, algumas vezes, nauseante.

“Lembro-me de certos momentos – chamemo-los geleiras no paraíso – em que, depois de saciar-me dela... após esforços fabulosos, insanos, que me deixavam bambo e listrado de azul, eu a tomava nos braços, afinal, com um mudo gemido de ternura humana (sua pele brilhava à luz do gás néon vinda, através das frestas dos estores, do pátio da estalagem, seus cílios fuliginosos embaciavam-me, os olhos cor de cascalho eram mais vagos do que nunca... enquanto o mundo todo não era senão uma pequena paciente ainda mergulhada na confusão de um anestésico, após uma grande operação) e a ternura se transformava em vergonha e desespero e eu embalava a minha leve e solitária Lolita em meus braços de mármore, e gemia em seus cálidos cabelos , e acariciava-a a esmo, e pedia-lhe, mudamente, que me abençoasse e, no auge dessa agoniada e generosa ternura humana (com a minha alma verdadeiramente dependurada de seu corpo nu, e prestes a arrepender-se), súbito, ironicamente, horrorosamente, a luxúria tornava a nascer e... ‘Oh, não!’, exclamava Lolita com um suspiro dirigido ao céu. E, num momento, a ternura e o azul – tudo se despedaçava.” (Nabocov, 1955, p.318)

O desfecho da história se dá com a fuga de Lolita acompanhada de um velho amigo de sua mãe que escrevia peças teatrais e pelo qual ela havia se apaixonado e reencontrado durante a viagem com Humbert. Não permanece com ele, conhece um jovem rapaz e casa-se com este. Um dia, depois de muitos anos, manda uma carta para Humbert, chamando-o de “querido papai” e dizendo que estava grávida. Pedia dinheiro. Previsivelmente, H.H. se dirigiu para a cidade onde ela morava, remoendo os planos que tinha há três anos de se vingar. Ao chagar na casa de Dolores Schiller, surpreende-se:

“Umas duas polegadas mais alta. Óculos de aro cor-de-rosa. Novo penteado, levantado para o alto da cabeça; brincos novos. Tudo tão simples! O momento, a morte que eu estivera arquitetando durante três anos era tão simples como um pedaço de lenha seca. Ela estava fraca e imensamente grávida. Sua cabeça parecia menor (na verdade apenas dois segundos haviam transcorrido, mas permitam-me que dê aos mesmos máxima e rígida duração possível, tanto quanto a vida possa suportar) as faces, pálidas e sardentas, estavam fundas e suas pernas e braços nus haviam perdido todo o tom bronzeado, de modo que seus pequenos pêlos apareciam. Usava chinelos desleixados.” (Nabocov, 1955, p.300)

Humbert não se vinga, pelo contrário, a ajuda financeiramente. Seu comportamento não se deve, como pode se pensar, à indiferença diante da mulher que tem, agora, a sua frente. “Não podia matá-la, claro, como alguns pensaram. Eu a amava, os senhores compreendem. Era amor à pri-meira vista, à última vista e a todas as outras vistas, sempre.” (Nabocov, 1955, p.301) Então estava o nosso irremediável pedófilo irremediavelmen-te apaixonado por uma moça de dezoito anos (lembre-se que seu interesse suportava até os quatorze) e queria, a todo custo, levá-la consigo e viver ao seu lado para sempre. Lolita se tornaria, não só madura, mas velha, e, a despeito disso, Humbert jurava se dispor a esperar por ela não importava quantos anos se lhe desse qualquer esperança de um dia, quem sabe, voltar.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A perversão é um tema que confere uma riqueza e profundidade na discussão dos mais variados temas e, como de costume na psicanálise, requer a compreensão de tantos outros conceitos. A partir da noção dessa complexidade e da localização fronteiriça com outras psicopatologias, entende-se porque trabalhar a perversão é tão custoso, imagino que inclusive clinicamente, em decorrência da dificuldade na demanda de análise, no diagnóstico e na direção de cura.

Como se pôde perceber, me ative numa compreensão básica, porém essencial da perversão, não havendo a pretensão de partir para uma análise propriamente dita do sujeito em questão, Humbert Humbert, o que, com efeito, não me seria possível fazer. A partir da idéia de recusa, e de que maneira esta opera em Humbert, adquirimos mais um instrumento para refletir sobre a perversão nas relações sociais contemporâneas. É vantajoso estar atento para a exigência de a perversão ser discutida como uma questão temporal, que precisa ser vista de maneira diferente de um século atrás.

Quanto à pedofilia, compreende-se que seja um assunto verdadeira-mente polêmico sendo impossível uma análise unilateral. É crime perante a lei, não obstante, há pedófilos que declaram “Mas elas gostam” e crianças que confirmam terem consentido sem qualquer tipo de ameaça. Mas a questão parece não ser essa. Eliminando-se o pudor em falar do assunto, e tendo em vista a sexualidade infantil, somos obrigados a admitir que tal relação ilícita entre uma criança e um adulto pode ser fisicamente prazerosa a ambos. Este fato não legitima o ato, não o torna saudável, não elimina possíveis repercussões na vida do indivíduo molestado e nem se configura como mais aceitável de acordo com as estruturas sociais.
(Salvador, novembro de 2006)


REFERÊNCIAS

CHEMAMA, Roland (1993). Dicionário de psicanálise. Porto Alegre, Artes Mé-dicas, 1995.

DOR, Joël (1987). Estrutura e perversões. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991.

FREUD, Sigmund (1905). As aberrações sexuais, in Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund FREUD, Rio de Janeiro, Imago, 1972.

FREUD, Sigmund (1919). Uma criança é espancada. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1972.

FREUD, Sigmund (1927). Fetichismo. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, Rio de Janeiro, Imago, 1972.

NABOKOV, Vladimir (1955). Lolita. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1970.

NASIO, Juan David (1988). Lições sobre os sete conceitos cruciais da psicanálise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992.

(Diana Lemos de Seixas Fraga é estudante de Psicologia da UFBA desde o segundo semestre de 2006, quando escreveu este trabalho.)

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Dois momentos de retorno da escrita: Carlos Heitor Cony

Cid Seixas

RESUMO
Depois de vinte anos sem escrever, Carlos Heitor Cony retoma o lugar conquistado junto a um público numeroso com a publicação de O piano e a orquestra, em 1996. O livro pode ser visto como uma alegoria pirotécnica da angústia e da morte, disfarçada no eterno embate entre o Bem e o Mal. Em seguida, Cony republica o seu primeiro e mais denso romance, O Ventre. São poucos, na história da literatura, os livros de estréia que continuam se impondo em meio à obra de um autor.
Palavras chave: Romance; Carlos Heitor Cony

ABSTRACT
After twenty years without writing, Carlos Heitor Cony reassumes the place he had conquered regarding a large public with the publication of O piano e a orquestra, in 1996. The book can be seen as a pyrotechnic allegory of anguish and death, disguised in the eternal struggle between good and evil. Then, Cony republishes his first and most dense novel, O Ventre. In the History of Literature, few debut books keep prominent amid the work of an author.
Keywords: Novel; Carlos Heitor Cony


Carlos Heitor Cony tornou-se conhecido e admirado como jornalista e escritor por uma qualidade essencial a ambos os ofícios: o domínio do texto. Enxuto e flexível, dúctil, tanto no dizer quanto no não dizer – ao sugerir o que não pode ser dito –, o texto deste profissional da palavra assegurou a permanência do seu nome nas letras brasileiras. Depois de mais de vinte anos sem publicar, voltou ao cenário literário com o romance Quase memória, que recebeu em 1995 o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira.

No ano seguinte (1996), publicou pela Companhia das Letras dois livros: Antes, o verão e O piano e a orquestra, ocupando lugar de destaque na crítica e nas páginas culturais da grande imprensa. O silêncio de duas décadas foi preenchido por obras que repõem o autor sob a mira dos estudiosos e propiciam aos novos leitores o conhecimento de um escritor que sabe usar a palavra. Quase memória é unanimemente considerada a obra máxima do autor nesta sua retomada criadora. Não por acaso, o título indica uma diretriz presente não apenas neste livro mas também em O piano e a orquestra. (1) Observe-se que os anos de maturidade de um escritor impõem o retorno da memória, como se esta quisesse triunfar sobre o invento. A imaginação não elabora apenas uma realidade inventada, mas sobretudo a realidade perdida e transformada em matéria viva pela memória.

Em O piano e a orquestra, a alegoria pirotécnica da angústia e da morte, disfarçada no eterno embate entre o Bem e o Mal, constitui a trama urdida a partir do destino anunciado do protagonista. Francisco de Assis Rodano, o herói das insólitas peripécias suburbanas, se deixa apresentar como Lúcifer Encarnado, o rival do Outro, de quem não ousa dizer o nome para não conspurcar a luciferina chama do seu desatino.O desafio a Deus contido na inapelável sentença “Ou Tu ou Eu”, apesar de bombástico, não atinge dimensões universais ou cósmicas, mas está circunscrito a um universo limitado entre os trilhos suburbanos da Estrada de Ferro Central do Brasil. O Rival do Outro é um demiurgo paroquial que liga seus poderes à periferia suburbana, desinteressando-se pelos mistérios do mundo ocorridos fora dos trilhos conhecidos. Trata-se, portanto, de uma versão mambembe, com toques de ópera bufa, das tensões entre o Bem e o Mal, destinada à explosão do riso como revelação despistadora dos abismos e labirintos do ser.


É precisamente esta característica do herói desvairado, Francisco de Assis Rodano, cujos limites do mundo acabam nas cercanias de Rodeio, a pequena localidade dos acontecimentos, que transforma a grandiosidade sugerida pelo clássico embate de forças polares numa impossível comédia de equívocos. Comédia, ou melhor: drama, protagonizado por criaturas possíveis, tangíveis demais para o absurdo da alegoria encobridora.


A presença do fantástico, transformando o livro numa folhetinesca história do non sense, nos leva a entrever uma relação entre o absurdo mundo ficcional de Rodeio e o absurdo contido no destino e nas circunstâncias reais e concretas do sujeito. Daí, talvez, a ponte sempre aberta ao trânsito entre a fantasia deslavada e as reedificações da memória persistente. Há trechos do livro em que o narrador, um jornalista separado da mulher, de vida solitária e sem outros prazeres, além do trabalho, parece tomar emprestados alguns fatos concretos acontecidos com um outro jornalista, o autor da obra. Nestes momentos, a objetividade presente no relato de fatos políticos e nas reflexões provocadas, retira o leitor do mundo desconhecido e imprevisível da ficção para inseri-lo no mundo mais ou menos previsível e conhecido da rememoração. O ritmo e a lógica interna do que é narrado transformam-se e conformam-se ao acontecido.


São fluxos superpostos de ficção e memória que tecem o fio da escrita em O piano e a orquestra. Aí, a orquestra furiosa e implacável não é mais o mundo, com seus fatos e turbilhões de sentimentos que fogem e se opõem ao controle do sujeito. O piano não é o indivíduo perdido e desencontrado com a orquestra. Piano e orquestra constituem sons distintos quando o piano em solo retira da partitura as linhas da memória, enquanto o bloco dos outros instrumentos, a orquestra, harmoniza as notas da ficção.

Mas, apesar da escrita modelar de Carlos Heitor Cony, das engenhosas linhas que estruturam o romance, falta a ele um urdimento de trama, ou uma história contada, capaz de atualizar a forma, tornando-a substância de emoção e de reflexão – por parte do leitor.


Ao buscar no livro uma história com princípio e fim, o leitor sente falta desta história visível. Como o livro é um palimpsesto, onde a estória lida esconde as palavras de uma outra história ocultada por sob a tinta das palavras visíveis, ao raspar a camada superficial para deixar entrever a ocultada, raspa-se também o que é contado nesta camada. Assim, o essencial da superfície aparece truncado, incompleto.


Daí o desapontamento do leitor que espera ver, na completude de uma trama visível e envolvente, metonímias da trama subjacente; esta sim, que por ser demasiadamente real e concreta, não se ordena e revela, mas precisa aparecer velada por sob as tintas do palimpsesto.



LUZ MORDAZ


Depois de vinte anos sem escrever, Carlos Heitor Cony retoma o lugar conquistado junto a um público numeroso com a publicação de O piano e a orquestra, pela Companhia das Letras, em 1996, e agora republica o seu primeiro e mais denso romance, O Ventre. (2) São poucos, na história da literatura, os livros de estréia que continuam se impondo em meio à obra de um autor. Com o tempo, o escritor aprimora a arte da escrita e descobre a forma de adequar a sua sensibilidade à sensibilidade do outro. Diferentemente dos livros de informação, os textos literários, ou de ficção, denunciam mais claramente os estágios de instabilidade ou de maturidade do autor.

Raros são os escritores cujo primeiro livro permanece como obra prima no conjunto da sua produção. Guimarães Rosa é um destes casos. Sagarana continua sendo, para muitos leitores, seu melhor volume de contos; um verdadeiro mar de histórias e vidas plasmadas nos vãos das palavras. Umberto Eco fez de O nome da rosa seu grande modelo. Mas, tanto o mineiro quanto o italiano reservaram suas obras de estréia literária para a maturidade.

O médico do interior João Guimarães Rosa andou revendo e rescrevendo os contos de Sagarana por muitos e muito anos. Alguns deles, mais de uma década antes de integrar o volume definitivo, fizeram parte de livros de contos que permaneceram inéditos. Uma destas coletâneas participou de um concurso literário e perdeu para Maria Perigosa, de Luís Jardim, conforme testemunho de Graciliano Ramos, que fazia parte da comissão julgadora.

Com paciência e humildade, Guimarães Rosa acolheu as restrições ao seu trabalho e burilou cada uma das narrativas, transformando-as em pedras de cintilância e perfeição. Já homem maduro, a correr mundo como diplomata, deu por terminado o trabalho de carpintaria – ou melhor, como queria Bilac, de ourivesaria – de Sagarana.

Já Umberto Eco tornou-se conhecido como filósofo e publicou quase uma dezena de livros antes de se aventurar no primeiro romance. O nome da rosa foi uma demonstração prática de suas teorias, evidenciando a possibilidade de unir a qualidade das obras eruditas à agilidade dos best sellers.

* * *

A atividade jornalística de Carlos Heitor Cony contribuiu para que ele chegasse ao domínio de um texto eficiente e bem elaborado. Tendo marcado época na imprensa do Rio de Janeiro, como articulista, cronista e editorialista, Cony ultrapassava as limitações do texto informativo e procurava, mesmo nas reportagens, imprimir um traço pessoal e reconhecível pelo público.

O ventre, publicado em 1958, revelava um romancista capaz de dominar plenamente as exigências da história contada. Se o livro já trazia as marcas que impuseram o nome de Cony no quadro do romance brasileiro, para esta oitava edição, o autor reviu e rescreveu a obra: “Mantive o essencial de um texto escrito há quarenta anos, inclusive ‘o sentimento amargo e áspero’ que, esse sim, fiquei devendo ao mestre Machado de Assis”.


Na verdade, Cony não deve apenas a Machado a amargura e a dolorosa resignação ao sofrimento trazidas pelo protagonista. O derrotismo do fim de século (“a carne é triste” e tudo já foi feito), adicionado ao existencialismo francês e à náusea da razão, transformam o sentimento do mundo tomado a Machado de Assis na vertente de um sintoma que eclodiria no pós-guerra para ganhar corpo nos anos cinqüenta. A assimilação de todas estas experiências, anteriores à sua, permitiu ao autor de O ventre forjar uma nova experiência – traduzida em ficção e própria da sua obra. A atmosfera pesada, onde se respira um misto de asco e desânimo, foi enriquecida no Brasil por autores estreantes como Breno Accioly e Carlos Heitor Cony. O inominado protagonista de O ventre tem parentesco com o menino personagem título do livro João Urso, de Accioly. Se o desprezível João Urso tinha um nome, nem isto sucede ao rapaz narigudo e desengonçado do romance de Cony.


Prova incômoda de uma relação proibida, o feto indesejado foi expulso do ventre para continuar indesejado como bastardo de uma família. Três crianças, nascidas de relações triangulares e amores divididos, constituem, em tempos e lugares diferentes, os motivos da trama narrativa. Nascido de forma indesejada, o protagonista – despojado do amor familiar e da própria estima – transita pelas páginas do livro também despojado de um nome. Um nome que fosse sua marca, sua presença, seu título de nascimento.Com calor apagado, desejo frio, ódio e amor requentados em cinzas mornas, o herói sem grandeza espera, cinicamente, que as pequenas tragédias existenciais sigam seu curso. Ao homem caberia apenas contemplar os fatos e aceitá-los.


Mas a atmosfera rarefeita, de personagens sombrios sobre um palco mal iluminado, nas mãos de um escritor hábil como Carlos Heitor Cony, possibilita a criação de uma obra clareada por raios de sol. O ventre é um grande livro! A exclamação do leitor, que sai das suas páginas encharcado por um jorro de luz gelada, é, no mínimo, esta. Ou outra que melhor possa traduzir a impressão de estar diante de uma obra que fica gravada como uma cicatriz.

Uma espécie de sarcasmo e de resignação socrática desembocam, não raro, numa visão divertida do mundo. Irônica, talvez. O humor mordaz é percebido e retirado das situação mais tensas e dramáticas. O que poderia ser uma tragédia explode numa comédia de enganos, como a voracidade amorosa da concorrida esposa de um resignado capitão. Expulso do colégio, castigado e ofendido, o herói obscuro considera os fatos com um riso de mofa. Tudo que condena, salva.

Os mesmos raios de sol que iluminam a história, às vezes, aquecem o afeto do protagonista, mas a descrença e a inapetência para a vida são mais fortes. A inércia vence o movimento. Como nas luzes da ribalta de Chaplin, vidas que se acabam a sorrir são luzes que se apagam. Nada mais.

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1. CONY, Carlos Heitor: O piano e a orquestra; romance. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, 306 p.

2 CONY, Carlos Heitor. O Ventre. 8ª ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, 196 p.