Gabriel Soares de Sousa: pequena Trágico-Marítima

Francisco Ferreira de Lima

Resumo

O lado visível do Império — de todo Império — é a sua espetacularidade, sem a qual não há demonstração de força. As armas são as mais poderosas e seus soldados, imbatíveis. Há, contudo, um outro lado do Império, construído sobre dor e morte, que tende a ser escondido. Quando isso não é possível, transforma-se ele também em espetáculo, base de reagenciamento da força imperial. É o que o artigo pretende desenvolver.
Palavras-chaves: Século XVI; literatura de viagem; império

ABSTRACT
The visible side of an empire — of every empire — is its specularity, without which theis no demonstration of power. The weapons are the mosto powerful and their soldiers, unbeatable. There is, however, another side of empires, constructed on pain and death,which is generally concealed. When that is not possible, it also becomesa spectacle itself, basis for the remanangment of the imperial force.
Key-words: XVIth century; travel literature; empire



Embora menos cantada – é próprio dos homens escondê-lo – a dor é companheira inseparável do júbilo na construção e manutenção do Império, sejam quais forem tempo e lugar. E não será preciso ir fundo na memória para o comprovarmos. Basta retomarmos a data mais emblemática dos tempos recentes: o 11 de setembro de 2001, quando o vizinho do Norte viu literalmente ruir suas duas “torres de orgulho” – para lembrar o título do hoje clássico ensaio de Barbara Tuchman.

Acontecido o impensável, cujas imagens, nesses tempos ditos pós-modernos, não mais se distinguiam dos filmes B hollywoodianos, a arrogância do Império volveu-se paranóia. E de tal ordem que nem mesmo o massacre de milhares de cidadãos do país miserável no qual presumivelmente se escondia o agressor, boa parte deles constituída por velhos, mulheres e crianças, foi o suficiente para amainá-la. Para amainá-la, repita-se, pois nada a fará desaparecer – pode-se acrescentar num exercício de macabra futurologia –, porque seu fundamento reside no fato de que o Império, uma vez devassado, coisa inconcebível para si próprio, voltará a sê-lo a qualquer momento e em qualquer circunstância. O ex bunker social sabe-se agora um dique pleno de fissuras, através das quais podem passar de aviões a bactérias – sem falar nos milhares de esfomeados a cruzar ilegalmente suas fronteiras, ameaçando arraigadas matrizes do seu imaginário, dentre elas a supremacia branca.
Por muito tempo, assim, bem mais do que se possa imaginar, cada “outro” – mais uns que outros, é verdade – será, ainda que não o seja, o inimigo potencial do gigante amedrontado, pagando, na forma de sua dura lei, o preço da suspeita, dilatada pelo medo pânico.

Minado, o gigante amedrontado precisa redobrar seus esforços quanto a sua capacidade de reação, de modo a fazer crer-se ainda mais poderoso, posto que fortalecido pelo sofrimento. A demonstração de força ganha ainda mais espetacularidade. E a dor transforma-se numa espécie de empréstimo, a ser saldado pelo júbilo da vitória contra o mal.

Júbilo e dor estiveram também congeminados na construção e manutenção do, visto de hoje, mambembe império português. Segundo Charles Boxer (1992: 217), um dos mais minuciosos leitores da expansão ultramarina portuguesa, num curto período por ele estudado – seis anos apenas – da primeira metade do século XVII, de um soma de cinco mil, duzentas e vinte e oito embarcadiços com destino à ìndia morreram exatamente dois mil setecentos e trinta e três, ou seja, 52% do total. Isso numa época na qual a carreira da Índia já era rota absolutamente familiar aos nautas portugueses, pois já a percorriam há longos dois séculos. E tais números não se deviam a quaisquer contratempos inesperados ou catástrofes aterradoras; eram, pelo contrário, cifras rotineiras, em concerto com os padrões de normalidade vigentes. Tratava-se apenas do preço, em vidas, a pagar pelas viagens aos camonianos mares nunca de antes navegados, mesmo que esse “de antes” já há muito tempo fosse um “depois”.

A bem dizer, tal ceifa em vidas, seja qual for o número, deve ser entendida como uma necessidade vital, talvez seja melhor dizer uma necessidade mortal, do Império. Trata-se de uma, se assim se deve dizer, morte ritualística, verdadeiro exercício de canibalismo, através da qual o Império chora, como em Pessoa (1972: 81), “Ó mar salgado, quanto do teu sal/são lágrimas de Portugal” e, com o choro, refaz suas forças no fortalecimento de uma espécie de mitologia de auto-imolação, de caráter martirológico, a impulsioná-lo para frente: “Quem quer passar além do Bojador/tem que passar além da dor”, como dirá o mesmo poeta no mesmo poema. A morte é, pois, base primeira para a vida do Império. E assim é porque este é o único meio de ele fazer-se grande e vivo: canibalizando, desfeito em remorso, os seus para canibalizar o “outro”, sem remorso nenhum.

No que se refere ao imaginário imperial português, podem-se encontrar referências a essa dor que engrandece o júbilo da conquista em quase todos os autores que trataram desta última, mesmo daqueles para quem conquistar é apenas motivo de regozijo, como já se verá adiante com Gabriel Soares de Sousa, nosso autor em questão. Mas em nenhum outro lugar toda sua intensa dramaticidade estará tão exposta como na História Trágico-Marítima, a compilação de relatos de naufrágios e desventuras organizada por Bernardo Gomes de Brito em 1735, que reúne as mais pungentes histórias do avesso do Império, quando o fracasso, o medo e a derrota substituem a arrogância da invencibilidade, permitindo ver em dramática panorâmica o quão débil – porque humanos – são seus agentes.

Tome-se para ilustração o mais conhecido de todos eles, o relato “da mui notável perda do galeão São João, em que se contam os grandes trabalhos e lastimosas cousas que aconteceram ao capitão Manuel de Sousa Sepúlveda e o lamentável fim que ele e sua mulher e filhos e toda a mais gente houveram na terra do Natal, onde se perderam a 24 de junho de 1552”.

Não seria de todo inapropriado se nos detivéssemos, ainda que de passagem, no título do relato, aliás, bem ao gosto daqueles tempos, o qual, não bastasse a retórica esfuziante de adjetivos (grandes, lastimosas, lamentável), carrega duas trágicas ironias. No primeiro caso, trata-se da coincidência entre o nome da embarcação e o dia do naufrágio, confluência que instaura um perfeito simbolismo do fim, como se previsto em outra e alta esfera.

Fizessem o que fizessem, aquelas pobres almas estavam condenadas à morte, parece apontar a infeliz relação, que faz o nome de um santo reverenciado pelo que promove em alegria aparecer em duplo aviso de morte. No segundo caso, há que observar o sublime no nome do lugar: “terra do Natal”, uma vez nome e lugar da salvação, agora, lugar e nome da perdição.

Como se sabe, dentre as primeiras tarefas impostas a um Império está a de renomear o mundo, de modo a incluí-lo em seu universo de significação, posto que nunca se interessa por nada que não compreenda. Assim, à apropriação material propriamente dita, precede a apropriação simbólica do território no qual a primeira se vai efetivar. E o renomear, claro, implica seleção criteriosa de nomes, aquilo que se tem de melhor, uma vez que se trata de, na lógica imperial, fundar efetivamente um mundo novo, fundação que se dá antes na e através da linguagem.

E para um mundo novo, nada menos que a única novidade do mundo velho, a natividade, o Natal, marco zero de um novo tempo, no qual a humanidade, perdida em trevas, houve de achar-se na luz desse nascituro, que veio ao mundo para mostrar o caminho da salvação. Caminho, agora, retraçado, em seu Nome pelo Império, cujos objetivos são os mesmos: fazer espalhar-se a Sua verdade, de modo a fazer o mundo nela espelhar-se.

Contudo, ao ver, a imagem invertida no espelho ante si próprio, isto é, o Natal como perdição ao invés de salvação; o “São João”, na embarcação e no calendário, como sinal vivo da morte, restará ao Império, nas figuras de alguns de seus mais eminentes agentes, apenas a dor de saber-se frágil, descobrindo, bem antes de um certo jagunço, que, abandonado por Deus e pelos homens a sua própria sorte, o que existe de fato é só homem humano, cujo único desejo é manter-se vivo.

Um rápido passeio pelo corpo do relato não mostrará coisa diferente. Ali ficamos a saber que se tratava de um contingente de quinhentas pessoas, nem todas iguais, já bem se sabe, pois o narrador faz questão – essas coisas próprias de todo Império – de diferenciar os duzentos “portugueses” dos trezentos “escravos”; contingente esse, aliás, logo reduzido em cento e dez vidas, que se perderam quando a nau partiu-se ao meio na tentativa de aproximar-se da terra. Após a recuperação dos feridos, forma-se uma caravana para demandar “terra de cristãos”, mais exatamente – o Império e suas fantasias nominalistas! – a aguada da Boa Paz.

Daí em diante, apesar dos nomes, a viagem ganha estatuto de peregrinação, no sentido mais popular do termo, na qual os peregrinos empreendem uma verdadeira descida aos infernos, numa sucessão de episódios funestos, cada um mais ameaçador que outro, como a submetê-los a uma prova de fé, sem que haja, já se sabe, possibilidade de recompensa pelo esforço praticado, pois a boa paz nunca virá. Aqui é a perda de um filho do próprio Sepúlveda, que, fraco de fome, vai perigosamente sendo deixado para trás, sem que se possa, para desespero do pai, ir buscá-lo quando se descobre sua ausência, dado que a caravana é seguida de perto por outra, composta de serpentes, tigres e leões famintos, sempre à espreita de retardatários. Ali são as asperezas do caminho, a obrigá-los a “subir serras mui altas”, descer outras de “grandíssimo perigo”, sempre acossados pela fome e sede, que vão dizimando drasticamente a companhia. Mais adiante, seis meses depois de desencontrada errância, é o assalto final dos cafres, os nativos, os quais, astutos e maliciosos, com sói ocorrer com essa gente, se aproveitam da fraqueza misturada à loucura dos portugueses para ludibriá-los numa negociação, deixando-os desarmados.

Mas a degradação ainda estava por completar-se: todos são deixados nus em pêlo, seguramente a mais emblemática humilhação sofrida pela alta linhagem do Império.
Com efeito, desde o primeiro dos primeiros dos viajantes – e certamente ninguém haverá de ter-se esquecido de Caminha e seus olhos ávidos por vergonhas, sem vergonha nenhuma expostas –, dentre os elementos fundamentais a marcar a diferença entre civilização e barbárie, a nudez é o mais chocante de todos, uma vez que repõe o homem numa esfera da qual a roupa o faz esquecer-se de tê-la habitado um dia. O choque, pois, não é tanto de ver o outro nu como o ver-se a si nele, desfazendo-se nesse gesto, séculos e séculos de cadeia evolutiva e de refinamento civilizacional.

Não é outro o choque provocado pela nudez compulsória a que se vêem obrigados Sepúlveda e seus (agora) poucos seguidores. Sem aquilo que os identifica como diferentes, resta-lhes, mais que uma não-identidade – releve-se o forçado da expressão – uma desidentidade, no dizer aflito de Brito (1998: 20): “E como já não levavam figura de homens (...), iam sem ordem, por desvairados caminhos; uns por mato e outros por serras (...), e já então cada um não curava mais que fazer aquilo em que lhe parecia que podia salvar a vida”.

Nesse contexto, o desfecho não surpreende: Dona Leonor, a fidalga senhora Sepúlveda, depois de resistir, brava mas inutilmente, a ser despida, enterra-se na areia, preferindo a morte à nudez. Depois de velá-la até o último suspiro, pois dali ela nunca mais arredará, ocasião em que também lhe morreu o último filho, e já agora de todo insano, Sepúlveda “meteu-se pelo mato, e nunca mais o viram” (Brito, 1998:21), como diz, com muito pesar, o narrador, ciente da dimensão da tragédia.

Evidentemente não se encontrará em Gabriel Soares de Sousa dramaticidade semelhante, mas bem se pode mapear ao longo do seu Tratado Descritivo do Brasil uma pequena Trágico-Marítima com o mesmo objetivo dessa outra: legitimar a vida do Império na morte de seus ilustres agentes, tão bem sumarizado no verso de Pessoa, atrás citado, que nunca é demais repetir: “Quem quer passar além do Bojador / tem que passar além da dor”.

O Tratado..., “tirado a limpo” para persuadir Felipe II de Espanha e I de Portugal a financiar uma expedição ao São Francisco, é um exaustivo levantamento do Brasil, do Amazonas à “ponta do rio da Prata”, num rigoroso exercício de pantometria, de que nada escapa. O efeito, só superado nos tempos modernos, é a mais abrangente compilação de dados corográficos, botânicos e zoológicos – para não falar nos etnográficos, históricos e geográficos – do Brasil em seus primeiros dias.

Como já se demonstrou, para compor esse pioneiro retrato do Brasil, Soares de Sousa se utiliza de duas estratégias retóricas distintas: na primeira, com o fito de deslumbrar o rei, arrola o elenco de maravilhas que caracteriza o Brasil. É terra tão incrivelmente grandiosa, que em tudo excede às conhecidas, as melhores delas, ressalte-se. Mas – e essa é a segunda estratégia –, ao lado de tais “lembranças”, agora com a intenção de levar o rei a agir rapidamente, expõe-se, as mais das vezes de maneira bombástica, o conjunto de ameaças iminentes a que o Brasil está exposto, sejam as de caráter externo, sejam aquelas outras internas, ambas, todavia, demandando intervenção urgente.

Perdido o Brasil – é do que Soares de Sousa pretende convencer o rei –, não se perderá apenas parte do Império, mas um repositório único de impressionantes maravilhas, preservado à custa de sangue, lágrimas e suores de seus filhos, os quais perderam suas vidas no mar, nas garras das feras ou ante as pontas das lanças dos índios para dilatá-lo – a ele e a fé.

É impossível aceitar, pois, que tal esforço tenha sido em vão. Daí a necessidade de seu registro, de maneira a fixar para o todo e sempre, o quão amargo é o drama da fundação de um Império assim como os “trabalhos” para sua manutenção.

São muitos os exemplos dados por Soares de Sousa a merecer análise. Observemos alguns poucos mais de perto. Comecemos pelo episódio relativo aos filhos de João de Barros, o grande historiador da expansão imperial portuguesa.



Vindo ao Brasil para tomar posse da Capitania do pai (pois este, ao que consta, tinha horror a viajar), naufragaram nas costas do Maranhão. Salvos do naufrágio, “passaram muitos trabalhos”, até ser resgatados anos depois por uma das muitas naus que seu devotado pai continuara a enviar em seu socorro “por sua conta (...) sem desta despesa lhe resultar nenhum proveito” (51), como faz questão de marcar o autor. Tal ressalva, aliás, tem função importante na narrativa, pois não só aponta a grandeza de caráter daquela ilustre personagem, na qual avulta a incansável labuta de um pai que tem nos filhos sua maior riqueza, como deixa patentes os riscos da empresa imperial – em vida e fortuna, esta última entendida em seus dois sentidos, antigo e moderno.

E não é de graça que as vicissitudes vividas por João de Barros e seus filhos mereçam tanta atenção por parte de Soares de Sousa – ele a elas se refere em pelo menos duas ocasiões, a primeira na página 46 e a segunda, de modo mais detido, na 51. Trata-se, como Camões, de uma outra daquelas grandes personagens do século XVI, cuja obra, mais do que contar do, criou um Império, a partir da sobretaxa de ficção imposta ao real. Nesse caso, contudo, não é o autor que conta, mas o ator que, ao participar diretamente da aventura, acrescentará uma dose de pungência a sua obra: não é um aventureiro anônimo e ganancioso qualquer, a lamentar-se de um golpe do azar; é, antes, o grande historiador da expansão vivendo na pele (e no bolso) o drama sobre o qual escreve, de modo a poder, antes de Pessoa, fingir a dor veramente sentida, para provar em sua própria carne que o Império é maior que qualquer homem, até mesmo seu criador.

E foi, é o que se deve concluir, o que apurou João de Barros. Após todos esses revezes, felizmente os filhos “se vieram a este Reino”, com o que ele pôde dedicar-se a sua aventura predileta e bem menos arriscada, a de criar o Império em palavras, no conforto de seu gabinete, cercado pelo carinho familiar.

Apresentado o homem de Letras, é preciso fazer o mesmo com o da religião, quanto mais não seja por se tratar de profissional vocacionado para o martírio:

“Aqui se perdeu o bispo do Brasil, D. Pedro Fernandes Sardinha, com sua nau vinda da Bahia para Lisboa, em a qual vinha Antônio Cardoso de Barros, provedor-mor que fora do Brasil, e dois cônegos e duas mulheres honradas e casadas, muitos homens nobres e outra muita gente, que seriam mais de cem pessoas brancas, afora escravos, a qual escapou toda deste naufrágio, mas não do gentio caeté, que neste tempo senhoreava esta costa da boca deste rio de São Francisco até o da Paraíba; depois que estes caetés roubaram este bispo e toda esta gente de quanto salvaram, os despiram e amarraram a bom recado, e pouco a pouco os foram matando e comendo, sem escapar mais que dois índios da Bahia com um português que sabia a língua.” (61)

Como se estivéssemos diante de uma página da grande Trágico-Marítima, podemos acompanhar em imagens nítidas o desdobrar-se do sacrifício do Império: primeiro é o naufrágio, tragédia suficiente em si mesma, posto que o mar, túmulo construído em sal e lágrimas, faz-se morada habitual dos que ousam desafiá-lo, como bem dizia o Mostrengo de Pessoa. Ter dele escapado, todavia – o que em outra circunstância seria o máximo a desejar – constitui aqui tão-somente uma espécie de ante-sala de um palácio de horrores, como a demonstrar o caráter inesgotável desses padecimentos. Com efeito, os ilustres agentes do Império, que, como já se viu, gente de menor importância não conta, vão defrontar a mais temível de todas as práticas da barbárie: o canibalismo, inscrito secularmente no imaginário europeu, e aqui apresentado em lento ritual de tortura – se lemos esse “pouco a pouco” trazido à cena do texto em seu pleno efeito retórico.

O ato, medonho em si mesmo, ganha dimensão de sacrilégio, uma vez que atinge um representante de Deus (daqueles mesmos que em outros ares andavam queimando desafetos, mas isso é outra história), ultrapassando, pois, a barreira das coisas atinentes ao mundo humano, para inserir-se no universo das práticas demoníacas, que afinal o dito cujo, em sua infinita capacidade de travestir-se, está sempre à espera do momento apropriado para desmoralizar as forças do Bem.

Com a introdução desse elemento sobrenatural, a morte ganha, assim, estatuto de martírio, a ser registrado nos anais das dores e lágrimas, que hão de gerar de parte a parte tantas outras lágrimas, dores e mortes sem as quais o Império não sabe nem pode viver.

A fome de vida, contudo, não se resolve na desaparição dos nobres. Insaciável, ela requer volume, traduzido em grandes números, pois a glória da conquista assenta-se na medida do sacrifício despendido, o qual ganhará multiplicada densidade dramática, com vistas a justificar o reagenciamento das forças imperiais. Para tanto, porém, é preciso expor as dores à exaustão.

“De Jacuípe a Arambepe, são duas léguas onde se perdeu a nau Santa Clara, que ia para a Índia, estando sobre amarra, e foi tanto o tempo que sobreveio, que a fez ir à caceia, que foi forçado cortarem-lhe o mastro grande, o que não bastou para se remediar, e os oficiais da nau, desconfiados da salvação, sendo meia-noite, deram à vela do traquete para ancorarem em terra e salvarem as vidas, o que lhes sucedeu pelo contrário; porque sendo esta costa toda limpa, afastada dos arrecifes, foram varar por cima de uma laje, não se sabendo outra de Pernambuco até a Bahia, a qual laje está um tiro de falcão ao mar dos arrecifes, onde se esta nau fez em pedaços, e morreram neste naufrágio passante de trezentos homens, com Luís de Alter de Andrade, que ia por capitão”. (71)

Observe-se, por exemplo, o efeito de teatralização da dor no uso da palavra “passante” no excerto acima. Não são trezentos nem trezentos e vinte e sete ou trezentos e cinqüenta e três os mortos. Não são um número exato. Ao contrário, são “passante” de trezentos, o que joga o número numa indefinição a ser recoberta pela imaginação do leitor, segundo sua sensibilidade e predisposição para o trágico.

Esse pequeno exemplário de padecimentos, porém, ficaria incompleto se não se referisse o fato de que o próprio Gabriel Soares de Sousa pagou com a vida o preço do sonho imperial. Vindo de Madrid em 1591, com a autorização para procurar ouro nas nascentes do São Francisco, morreu às margens do rio Paraguaçu, próximo ao lugar onde, sete anos antes, desaparecera seu irmão, vítima da mesma busca e da mesma cobiça. História que ele, infelizmente, já não pode dramatizar, uma vez que se deu ele próprio em sacrifício ritualístico, sem o que o império – nenhum império – se justifica perante si mesmo e “o outro” com tal.
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(1) A celebração do São João, no Hemisfério Norte, vincula-se à passagem do dia mais longo do ano, que marca, por sua vez, a chegada do solstício de Verão.


REFERÊNCIAS

BOXER, Charles. R. (1992). O império marítimo português. Lisboa, Edições 70.
BRITO, Bernardo Gomes de (compilação de) (1998). História Trágico-marítima. Rio de Janeiro, Lacerda/Contraponto.
PESSOA, Fernando (1972). Obra poética. Rio de Janeiro, Aguillar.
SOUSA, Gabriel Soares de (1851/1987) Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo, Companhia Editora Nacional.

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