Cid Seixas
Carlos Heitor Cony tornou-se conhecido e admirado como jornalista e escritor por uma qualidade essencial a ambos os ofícios: o domínio do texto. Enxuto e flexível, dúctil, tanto no dizer quanto no não dizer – ao sugerir o que não pode ser dito –, o texto deste profissional da palavra assegurou a permanência do seu nome nas letras brasileiras. Depois de mais de vinte anos sem publicar, voltou ao cenário literário com o romance Quase memória, que recebeu em 1995 o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira.
1. CONY, Carlos Heitor: O piano e a orquestra; romance. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, 306 p.
2 CONY, Carlos Heitor. O Ventre. 8ª ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, 196 p.
RESUMO
Depois de vinte anos sem escrever, Carlos Heitor Cony retoma o lugar conquistado junto a um público numeroso com a publicação de O piano e a orquestra, em 1996. O livro pode ser visto como uma alegoria pirotécnica da angústia e da morte, disfarçada no eterno embate entre o Bem e o Mal. Em seguida, Cony republica o seu primeiro e mais denso romance, O Ventre. São poucos, na história da literatura, os livros de estréia que continuam se impondo em meio à obra de um autor.
Palavras chave: Romance; Carlos Heitor Cony
ABSTRACT
After twenty years without writing, Carlos Heitor Cony reassumes the place he had conquered regarding a large public with the publication of O piano e a orquestra, in 1996. The book can be seen as a pyrotechnic allegory of anguish and death, disguised in the eternal struggle between good and evil. Then, Cony republishes his first and most dense novel, O Ventre. In the History of Literature, few debut books keep prominent amid the work of an author.
Keywords: Novel; Carlos Heitor Cony
Depois de vinte anos sem escrever, Carlos Heitor Cony retoma o lugar conquistado junto a um público numeroso com a publicação de O piano e a orquestra, em 1996. O livro pode ser visto como uma alegoria pirotécnica da angústia e da morte, disfarçada no eterno embate entre o Bem e o Mal. Em seguida, Cony republica o seu primeiro e mais denso romance, O Ventre. São poucos, na história da literatura, os livros de estréia que continuam se impondo em meio à obra de um autor.
Palavras chave: Romance; Carlos Heitor Cony
ABSTRACT
After twenty years without writing, Carlos Heitor Cony reassumes the place he had conquered regarding a large public with the publication of O piano e a orquestra, in 1996. The book can be seen as a pyrotechnic allegory of anguish and death, disguised in the eternal struggle between good and evil. Then, Cony republishes his first and most dense novel, O Ventre. In the History of Literature, few debut books keep prominent amid the work of an author.
Keywords: Novel; Carlos Heitor Cony
Carlos Heitor Cony tornou-se conhecido e admirado como jornalista e escritor por uma qualidade essencial a ambos os ofícios: o domínio do texto. Enxuto e flexível, dúctil, tanto no dizer quanto no não dizer – ao sugerir o que não pode ser dito –, o texto deste profissional da palavra assegurou a permanência do seu nome nas letras brasileiras. Depois de mais de vinte anos sem publicar, voltou ao cenário literário com o romance Quase memória, que recebeu em 1995 o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira.
No ano seguinte (1996), publicou pela Companhia das Letras dois livros: Antes, o verão e O piano e a orquestra, ocupando lugar de destaque na crítica e nas páginas culturais da grande imprensa. O silêncio de duas décadas foi preenchido por obras que repõem o autor sob a mira dos estudiosos e propiciam aos novos leitores o conhecimento de um escritor que sabe usar a palavra. Quase memória é unanimemente considerada a obra máxima do autor nesta sua retomada criadora. Não por acaso, o título indica uma diretriz presente não apenas neste livro mas também em O piano e a orquestra. (1) Observe-se que os anos de maturidade de um escritor impõem o retorno da memória, como se esta quisesse triunfar sobre o invento. A imaginação não elabora apenas uma realidade inventada, mas sobretudo a realidade perdida e transformada em matéria viva pela memória.
Em O piano e a orquestra, a alegoria pirotécnica da angústia e da morte, disfarçada no eterno embate entre o Bem e o Mal, constitui a trama urdida a partir do destino anunciado do protagonista. Francisco de Assis Rodano, o herói das insólitas peripécias suburbanas, se deixa apresentar como Lúcifer Encarnado, o rival do Outro, de quem não ousa dizer o nome para não conspurcar a luciferina chama do seu desatino.O desafio a Deus contido na inapelável sentença “Ou Tu ou Eu”, apesar de bombástico, não atinge dimensões universais ou cósmicas, mas está circunscrito a um universo limitado entre os trilhos suburbanos da Estrada de Ferro Central do Brasil. O Rival do Outro é um demiurgo paroquial que liga seus poderes à periferia suburbana, desinteressando-se pelos mistérios do mundo ocorridos fora dos trilhos conhecidos. Trata-se, portanto, de uma versão mambembe, com toques de ópera bufa, das tensões entre o Bem e o Mal, destinada à explosão do riso como revelação despistadora dos abismos e labirintos do ser.
É precisamente esta característica do herói desvairado, Francisco de Assis Rodano, cujos limites do mundo acabam nas cercanias de Rodeio, a pequena localidade dos acontecimentos, que transforma a grandiosidade sugerida pelo clássico embate de forças polares numa impossível comédia de equívocos. Comédia, ou melhor: drama, protagonizado por criaturas possíveis, tangíveis demais para o absurdo da alegoria encobridora.
A presença do fantástico, transformando o livro numa folhetinesca história do non sense, nos leva a entrever uma relação entre o absurdo mundo ficcional de Rodeio e o absurdo contido no destino e nas circunstâncias reais e concretas do sujeito. Daí, talvez, a ponte sempre aberta ao trânsito entre a fantasia deslavada e as reedificações da memória persistente. Há trechos do livro em que o narrador, um jornalista separado da mulher, de vida solitária e sem outros prazeres, além do trabalho, parece tomar emprestados alguns fatos concretos acontecidos com um outro jornalista, o autor da obra. Nestes momentos, a objetividade presente no relato de fatos políticos e nas reflexões provocadas, retira o leitor do mundo desconhecido e imprevisível da ficção para inseri-lo no mundo mais ou menos previsível e conhecido da rememoração. O ritmo e a lógica interna do que é narrado transformam-se e conformam-se ao acontecido.
São fluxos superpostos de ficção e memória que tecem o fio da escrita em O piano e a orquestra. Aí, a orquestra furiosa e implacável não é mais o mundo, com seus fatos e turbilhões de sentimentos que fogem e se opõem ao controle do sujeito. O piano não é o indivíduo perdido e desencontrado com a orquestra. Piano e orquestra constituem sons distintos quando o piano em solo retira da partitura as linhas da memória, enquanto o bloco dos outros instrumentos, a orquestra, harmoniza as notas da ficção.
Mas, apesar da escrita modelar de Carlos Heitor Cony, das engenhosas linhas que estruturam o romance, falta a ele um urdimento de trama, ou uma história contada, capaz de atualizar a forma, tornando-a substância de emoção e de reflexão – por parte do leitor.
Ao buscar no livro uma história com princípio e fim, o leitor sente falta desta história visível. Como o livro é um palimpsesto, onde a estória lida esconde as palavras de uma outra história ocultada por sob a tinta das palavras visíveis, ao raspar a camada superficial para deixar entrever a ocultada, raspa-se também o que é contado nesta camada. Assim, o essencial da superfície aparece truncado, incompleto.
Daí o desapontamento do leitor que espera ver, na completude de uma trama visível e envolvente, metonímias da trama subjacente; esta sim, que por ser demasiadamente real e concreta, não se ordena e revela, mas precisa aparecer velada por sob as tintas do palimpsesto.
LUZ MORDAZ
Depois de vinte anos sem escrever, Carlos Heitor Cony retoma o lugar conquistado junto a um público numeroso com a publicação de O piano e a orquestra, pela Companhia das Letras, em 1996, e agora republica o seu primeiro e mais denso romance, O Ventre. (2) São poucos, na história da literatura, os livros de estréia que continuam se impondo em meio à obra de um autor. Com o tempo, o escritor aprimora a arte da escrita e descobre a forma de adequar a sua sensibilidade à sensibilidade do outro. Diferentemente dos livros de informação, os textos literários, ou de ficção, denunciam mais claramente os estágios de instabilidade ou de maturidade do autor.
Raros são os escritores cujo primeiro livro permanece como obra prima no conjunto da sua produção. Guimarães Rosa é um destes casos. Sagarana continua sendo, para muitos leitores, seu melhor volume de contos; um verdadeiro mar de histórias e vidas plasmadas nos vãos das palavras. Umberto Eco fez de O nome da rosa seu grande modelo. Mas, tanto o mineiro quanto o italiano reservaram suas obras de estréia literária para a maturidade.
O médico do interior João Guimarães Rosa andou revendo e rescrevendo os contos de Sagarana por muitos e muito anos. Alguns deles, mais de uma década antes de integrar o volume definitivo, fizeram parte de livros de contos que permaneceram inéditos. Uma destas coletâneas participou de um concurso literário e perdeu para Maria Perigosa, de Luís Jardim, conforme testemunho de Graciliano Ramos, que fazia parte da comissão julgadora.
Com paciência e humildade, Guimarães Rosa acolheu as restrições ao seu trabalho e burilou cada uma das narrativas, transformando-as em pedras de cintilância e perfeição. Já homem maduro, a correr mundo como diplomata, deu por terminado o trabalho de carpintaria – ou melhor, como queria Bilac, de ourivesaria – de Sagarana.
Já Umberto Eco tornou-se conhecido como filósofo e publicou quase uma dezena de livros antes de se aventurar no primeiro romance. O nome da rosa foi uma demonstração prática de suas teorias, evidenciando a possibilidade de unir a qualidade das obras eruditas à agilidade dos best sellers.
Em O piano e a orquestra, a alegoria pirotécnica da angústia e da morte, disfarçada no eterno embate entre o Bem e o Mal, constitui a trama urdida a partir do destino anunciado do protagonista. Francisco de Assis Rodano, o herói das insólitas peripécias suburbanas, se deixa apresentar como Lúcifer Encarnado, o rival do Outro, de quem não ousa dizer o nome para não conspurcar a luciferina chama do seu desatino.O desafio a Deus contido na inapelável sentença “Ou Tu ou Eu”, apesar de bombástico, não atinge dimensões universais ou cósmicas, mas está circunscrito a um universo limitado entre os trilhos suburbanos da Estrada de Ferro Central do Brasil. O Rival do Outro é um demiurgo paroquial que liga seus poderes à periferia suburbana, desinteressando-se pelos mistérios do mundo ocorridos fora dos trilhos conhecidos. Trata-se, portanto, de uma versão mambembe, com toques de ópera bufa, das tensões entre o Bem e o Mal, destinada à explosão do riso como revelação despistadora dos abismos e labirintos do ser.
É precisamente esta característica do herói desvairado, Francisco de Assis Rodano, cujos limites do mundo acabam nas cercanias de Rodeio, a pequena localidade dos acontecimentos, que transforma a grandiosidade sugerida pelo clássico embate de forças polares numa impossível comédia de equívocos. Comédia, ou melhor: drama, protagonizado por criaturas possíveis, tangíveis demais para o absurdo da alegoria encobridora.
A presença do fantástico, transformando o livro numa folhetinesca história do non sense, nos leva a entrever uma relação entre o absurdo mundo ficcional de Rodeio e o absurdo contido no destino e nas circunstâncias reais e concretas do sujeito. Daí, talvez, a ponte sempre aberta ao trânsito entre a fantasia deslavada e as reedificações da memória persistente. Há trechos do livro em que o narrador, um jornalista separado da mulher, de vida solitária e sem outros prazeres, além do trabalho, parece tomar emprestados alguns fatos concretos acontecidos com um outro jornalista, o autor da obra. Nestes momentos, a objetividade presente no relato de fatos políticos e nas reflexões provocadas, retira o leitor do mundo desconhecido e imprevisível da ficção para inseri-lo no mundo mais ou menos previsível e conhecido da rememoração. O ritmo e a lógica interna do que é narrado transformam-se e conformam-se ao acontecido.
São fluxos superpostos de ficção e memória que tecem o fio da escrita em O piano e a orquestra. Aí, a orquestra furiosa e implacável não é mais o mundo, com seus fatos e turbilhões de sentimentos que fogem e se opõem ao controle do sujeito. O piano não é o indivíduo perdido e desencontrado com a orquestra. Piano e orquestra constituem sons distintos quando o piano em solo retira da partitura as linhas da memória, enquanto o bloco dos outros instrumentos, a orquestra, harmoniza as notas da ficção.
Mas, apesar da escrita modelar de Carlos Heitor Cony, das engenhosas linhas que estruturam o romance, falta a ele um urdimento de trama, ou uma história contada, capaz de atualizar a forma, tornando-a substância de emoção e de reflexão – por parte do leitor.
Ao buscar no livro uma história com princípio e fim, o leitor sente falta desta história visível. Como o livro é um palimpsesto, onde a estória lida esconde as palavras de uma outra história ocultada por sob a tinta das palavras visíveis, ao raspar a camada superficial para deixar entrever a ocultada, raspa-se também o que é contado nesta camada. Assim, o essencial da superfície aparece truncado, incompleto.
Daí o desapontamento do leitor que espera ver, na completude de uma trama visível e envolvente, metonímias da trama subjacente; esta sim, que por ser demasiadamente real e concreta, não se ordena e revela, mas precisa aparecer velada por sob as tintas do palimpsesto.
LUZ MORDAZ
Depois de vinte anos sem escrever, Carlos Heitor Cony retoma o lugar conquistado junto a um público numeroso com a publicação de O piano e a orquestra, pela Companhia das Letras, em 1996, e agora republica o seu primeiro e mais denso romance, O Ventre. (2) São poucos, na história da literatura, os livros de estréia que continuam se impondo em meio à obra de um autor. Com o tempo, o escritor aprimora a arte da escrita e descobre a forma de adequar a sua sensibilidade à sensibilidade do outro. Diferentemente dos livros de informação, os textos literários, ou de ficção, denunciam mais claramente os estágios de instabilidade ou de maturidade do autor.
Raros são os escritores cujo primeiro livro permanece como obra prima no conjunto da sua produção. Guimarães Rosa é um destes casos. Sagarana continua sendo, para muitos leitores, seu melhor volume de contos; um verdadeiro mar de histórias e vidas plasmadas nos vãos das palavras. Umberto Eco fez de O nome da rosa seu grande modelo. Mas, tanto o mineiro quanto o italiano reservaram suas obras de estréia literária para a maturidade.
O médico do interior João Guimarães Rosa andou revendo e rescrevendo os contos de Sagarana por muitos e muito anos. Alguns deles, mais de uma década antes de integrar o volume definitivo, fizeram parte de livros de contos que permaneceram inéditos. Uma destas coletâneas participou de um concurso literário e perdeu para Maria Perigosa, de Luís Jardim, conforme testemunho de Graciliano Ramos, que fazia parte da comissão julgadora.
Com paciência e humildade, Guimarães Rosa acolheu as restrições ao seu trabalho e burilou cada uma das narrativas, transformando-as em pedras de cintilância e perfeição. Já homem maduro, a correr mundo como diplomata, deu por terminado o trabalho de carpintaria – ou melhor, como queria Bilac, de ourivesaria – de Sagarana.
Já Umberto Eco tornou-se conhecido como filósofo e publicou quase uma dezena de livros antes de se aventurar no primeiro romance. O nome da rosa foi uma demonstração prática de suas teorias, evidenciando a possibilidade de unir a qualidade das obras eruditas à agilidade dos best sellers.
* * *
A atividade jornalística de Carlos Heitor Cony contribuiu para que ele chegasse ao domínio de um texto eficiente e bem elaborado. Tendo marcado época na imprensa do Rio de Janeiro, como articulista, cronista e editorialista, Cony ultrapassava as limitações do texto informativo e procurava, mesmo nas reportagens, imprimir um traço pessoal e reconhecível pelo público.
O ventre, publicado em 1958, revelava um romancista capaz de dominar plenamente as exigências da história contada. Se o livro já trazia as marcas que impuseram o nome de Cony no quadro do romance brasileiro, para esta oitava edição, o autor reviu e rescreveu a obra: “Mantive o essencial de um texto escrito há quarenta anos, inclusive ‘o sentimento amargo e áspero’ que, esse sim, fiquei devendo ao mestre Machado de Assis”.
Na verdade, Cony não deve apenas a Machado a amargura e a dolorosa resignação ao sofrimento trazidas pelo protagonista. O derrotismo do fim de século (“a carne é triste” e tudo já foi feito), adicionado ao existencialismo francês e à náusea da razão, transformam o sentimento do mundo tomado a Machado de Assis na vertente de um sintoma que eclodiria no pós-guerra para ganhar corpo nos anos cinqüenta. A assimilação de todas estas experiências, anteriores à sua, permitiu ao autor de O ventre forjar uma nova experiência – traduzida em ficção e própria da sua obra. A atmosfera pesada, onde se respira um misto de asco e desânimo, foi enriquecida no Brasil por autores estreantes como Breno Accioly e Carlos Heitor Cony. O inominado protagonista de O ventre tem parentesco com o menino personagem título do livro João Urso, de Accioly. Se o desprezível João Urso tinha um nome, nem isto sucede ao rapaz narigudo e desengonçado do romance de Cony.
Prova incômoda de uma relação proibida, o feto indesejado foi expulso do ventre para continuar indesejado como bastardo de uma família. Três crianças, nascidas de relações triangulares e amores divididos, constituem, em tempos e lugares diferentes, os motivos da trama narrativa. Nascido de forma indesejada, o protagonista – despojado do amor familiar e da própria estima – transita pelas páginas do livro também despojado de um nome. Um nome que fosse sua marca, sua presença, seu título de nascimento.Com calor apagado, desejo frio, ódio e amor requentados em cinzas mornas, o herói sem grandeza espera, cinicamente, que as pequenas tragédias existenciais sigam seu curso. Ao homem caberia apenas contemplar os fatos e aceitá-los.
Mas a atmosfera rarefeita, de personagens sombrios sobre um palco mal iluminado, nas mãos de um escritor hábil como Carlos Heitor Cony, possibilita a criação de uma obra clareada por raios de sol. O ventre é um grande livro! A exclamação do leitor, que sai das suas páginas encharcado por um jorro de luz gelada, é, no mínimo, esta. Ou outra que melhor possa traduzir a impressão de estar diante de uma obra que fica gravada como uma cicatriz.
Uma espécie de sarcasmo e de resignação socrática desembocam, não raro, numa visão divertida do mundo. Irônica, talvez. O humor mordaz é percebido e retirado das situação mais tensas e dramáticas. O que poderia ser uma tragédia explode numa comédia de enganos, como a voracidade amorosa da concorrida esposa de um resignado capitão. Expulso do colégio, castigado e ofendido, o herói obscuro considera os fatos com um riso de mofa. Tudo que condena, salva.
Os mesmos raios de sol que iluminam a história, às vezes, aquecem o afeto do protagonista, mas a descrença e a inapetência para a vida são mais fortes. A inércia vence o movimento. Como nas luzes da ribalta de Chaplin, vidas que se acabam a sorrir são luzes que se apagam. Nada mais.
O ventre, publicado em 1958, revelava um romancista capaz de dominar plenamente as exigências da história contada. Se o livro já trazia as marcas que impuseram o nome de Cony no quadro do romance brasileiro, para esta oitava edição, o autor reviu e rescreveu a obra: “Mantive o essencial de um texto escrito há quarenta anos, inclusive ‘o sentimento amargo e áspero’ que, esse sim, fiquei devendo ao mestre Machado de Assis”.
Na verdade, Cony não deve apenas a Machado a amargura e a dolorosa resignação ao sofrimento trazidas pelo protagonista. O derrotismo do fim de século (“a carne é triste” e tudo já foi feito), adicionado ao existencialismo francês e à náusea da razão, transformam o sentimento do mundo tomado a Machado de Assis na vertente de um sintoma que eclodiria no pós-guerra para ganhar corpo nos anos cinqüenta. A assimilação de todas estas experiências, anteriores à sua, permitiu ao autor de O ventre forjar uma nova experiência – traduzida em ficção e própria da sua obra. A atmosfera pesada, onde se respira um misto de asco e desânimo, foi enriquecida no Brasil por autores estreantes como Breno Accioly e Carlos Heitor Cony. O inominado protagonista de O ventre tem parentesco com o menino personagem título do livro João Urso, de Accioly. Se o desprezível João Urso tinha um nome, nem isto sucede ao rapaz narigudo e desengonçado do romance de Cony.
Prova incômoda de uma relação proibida, o feto indesejado foi expulso do ventre para continuar indesejado como bastardo de uma família. Três crianças, nascidas de relações triangulares e amores divididos, constituem, em tempos e lugares diferentes, os motivos da trama narrativa. Nascido de forma indesejada, o protagonista – despojado do amor familiar e da própria estima – transita pelas páginas do livro também despojado de um nome. Um nome que fosse sua marca, sua presença, seu título de nascimento.Com calor apagado, desejo frio, ódio e amor requentados em cinzas mornas, o herói sem grandeza espera, cinicamente, que as pequenas tragédias existenciais sigam seu curso. Ao homem caberia apenas contemplar os fatos e aceitá-los.
Mas a atmosfera rarefeita, de personagens sombrios sobre um palco mal iluminado, nas mãos de um escritor hábil como Carlos Heitor Cony, possibilita a criação de uma obra clareada por raios de sol. O ventre é um grande livro! A exclamação do leitor, que sai das suas páginas encharcado por um jorro de luz gelada, é, no mínimo, esta. Ou outra que melhor possa traduzir a impressão de estar diante de uma obra que fica gravada como uma cicatriz.
Uma espécie de sarcasmo e de resignação socrática desembocam, não raro, numa visão divertida do mundo. Irônica, talvez. O humor mordaz é percebido e retirado das situação mais tensas e dramáticas. O que poderia ser uma tragédia explode numa comédia de enganos, como a voracidade amorosa da concorrida esposa de um resignado capitão. Expulso do colégio, castigado e ofendido, o herói obscuro considera os fatos com um riso de mofa. Tudo que condena, salva.
Os mesmos raios de sol que iluminam a história, às vezes, aquecem o afeto do protagonista, mas a descrença e a inapetência para a vida são mais fortes. A inércia vence o movimento. Como nas luzes da ribalta de Chaplin, vidas que se acabam a sorrir são luzes que se apagam. Nada mais.
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1. CONY, Carlos Heitor: O piano e a orquestra; romance. São Paulo, Companhia das Letras, 1996, 306 p.
2 CONY, Carlos Heitor. O Ventre. 8ª ed. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, 196 p.