Uma paralelo entre o estudo das perversões e Lolita, de Nabokov

Diana Lemos Fraga


RESUMO
A perversão interessa a todos uma vez que se faz presente na dinâmica do desejo, ao qual não se pode nem sequer escapar. Segundo Freud, não só toda perversão é sexual como sua origem está inscrita no desenvolvimento da sexualidade dita normal. Estudo do problema, tomando como referência o romance Lolita, de Vladimir Nabocov.
Palavras-chave: Perversão; Freud; Sexualidade

ABSTRACT
The subject of perversion is of interest to us all, since it is present in the dynamics of desire, of which no one can escape. According to Freud, not only every perversion is sexual but its origin is inscribed in the development of the so-called normal sexuality. This article presents a study of the problem, taking as reference the novel Lolita, by Vladimir Nabocov.
Keywords: Perversion; Freud; Sexuality

INTRODUÇÃO

A compreensão de perversão é, na maioria das vezes, comprometida por um julgamento moral da sociedade, o que expressa uma inconsistência compreendida pelo não embasamento teórico. Pode-se dizer que a mídia também possui uma parcela da responsabilidade de deturpação do termo na medida em que, costumeiramente, associa este à idéia de iniqüidade. É comum a confusão entre perversão e perversidade, até mesmo pelo fato de existir apenas uma palavra para designar o sujeito que comete perversidades e que sofre de perversão no tocante às pulsões.

Uma discussão um tanto mais profunda sobre perversões demanda uma apreciação do conceito psicanalítico do termo. Por conseguinte, no presente trabalho, procura-se formular uma sínese da concepção freudiana a respeito do tema e dar enfoque a certos conceitos que permitem o estabelecimento de um paralelo com o romance Lolita, de Vladimir Nabocov. Fez-se necessária uma pesquisa, na obra de Freud e em diferentes autores, não restrita apenas às perversões, mas a respeito de outros conceitos como o das pulsões, da castração e do recalcamento, para que, a partir de então, fosse possível uma mínima elucidação do complexo tema.

A perversão é uma questão que interessa a todos nós, uma vez que se faz presente ao menos na dinâmica do desejo, ao qual não se pode (nem se quer) escapar. Segundo Freud, não só toda perversão é sexual como sua origem está inscrita no desenvolvimento da sexualidade dita normal. Sua abordagem da teoria da sexualidade, em 1905, iria promover uma atualização sobre o tema, como suscitar diversas discussões principalmente em razão da teoria da sexualidade infantil, a qual não se assumia nem se aceitava. Freud viria escandalizar a sociedade com a afirmação de que não só a criança possui uma sexualidade, como esta é perversa. De acordo com uma lógica simples: se a infância é uma fase universal para todos os seres humanos, a perversão sexual com certeza está ou, para aqueles que insistem em negar nuances perversas em si mesmo, já esteve presente no inegável desenvolvimento sexual de todos os indivíduos.

A idéia de traçar um paralelo entre as teorias freudianas e o livro Lolita se explica por diversos motivos. Em primeiro lugar, a pedofilia é um desvio quanto ao objeto sexual que deve ser tratado com um cuidado particular, uma vez que afeta profundamente a moral da estrutura da sociedade ocidental. Relacionamentos amorosos e mesmo casamentos entre pessoas com uma grande diferença de idade pode ser facilmente citada, está presente em obras célebres da literatura mundial:

“Beatriz tinha nove anos, quando fez palpitar o coração de Dante; Laura tinha apenas doze anos (como Lolita), quando inspirou a Petrarca um dos seus mais belos sonetos. Os célebres amantes Romeu e Julieta, da tragédia shakespeariana, não fogem a essa estranha condição: a bela Capuleto não tinha mais de treze anos quando se entregou ao amante proibido. Edgard Allan Poe já era maduro quando se casou com uma menina de quatorze.” (Silveira, 1970, Aba 1 do livro Lolita)

Mas não é preciso irmos tão longe. Em nosso país, há algumas décadas, era muito comum e perfeitamente aceitável o casamento entre homens maduros e adolescentes. Felizmente, nos dias atuais, há uma maior discussão em torno da preservação dos direitos e integridade física e moral da criança e do adolescente, muito embora saibamos que ainda há inegáveis abusos e lastimosa impunidade sobre a questão. Contudo, não cabe aqui uma análise profunda do descaso e abandono quanto às crianças e adolescentes – não apenas na esfera da pedofilia, mas de explorações em geral – especialmente em países de terceiro mundo (que, a propósito, não é o caso de Lolita).

O romance de Vladimir Nabokov tornou-se um clássico da literatu-ra contemporânea e foi posteriormente filmado pelo célebre diretor Stanley Kubrick. Promoveu uma retomada de um tema tão antigo quanto polêmico, devido a sua competência estilística literária, de maneira inovadora. Não se propõe, na obra, uma condenação, mas a exposição do amor, desejo, manipulação, adoração, e mesmo obsessão de um homem vivido por uma púbere.


"FREUD EXPLICA?"
OU: EM NOME DO PAI

As perversões são apresentadas por Freud, em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, no capítulo “As aberrações sexuais”, como atividades sexuais que ou não se limitam às regiões do corpo destinadas à cópula – genitais –, ou se demoram exageradamente em fases preliminares da relação sexual que deveriam ser ultrapassadas a fim de se atingir o objetivo sexual final.

Existem algumas observações e fatores essenciais para o estudo e compreensão das perversões. A repugnância é um fator importante para a definição de um objetivo sexual como perversão. O sexo anal é, portanto, um exemplo do desvio, uma vez que o anus não apenas é uma região não destinada à união sexual, mas também possui uma função fisiológica da qual desde cedo aprende-se a relacionar com a idéia de nojo. É interessante notar, também, que os fatores que impedem ou dificultam a realização do objetivo sexual final irão favorecer uma maior demora em atividades preparatórias, de modo que estas podem se configurar como novos objetivos sexuais, sendo possível terminarem por tomar o lugar do objetivo normal. A escopofilia é uma perversão por esse motivo, mas existem outros aspectos que também contribuem, como, por exemplo, a superação da repugnância e a satisfação obtida pelo ato de olhar restrita às genitais. Ainda quanto ao abandono do objetivo sexual normal, deve-se mencionar o fetichismo. Nesse caso, o interesse em relação ao objeto sexual se transfere de forma exagerada para uma parte do corpo que não é apropriada para finalidades sexuais, ou para um objeto inanimado que tenha alguma relação com a pessoa que ele substituiu, como uma peça de roupa,por exemplo.

Vale a pena destacar, ainda, a que talvez seja a mais comum de todas as perversões, o sadismo. É o desejo e prazer obtido por infligir dor a alguém; pode também voltar-se para o próprio eu, caracterizando o masoquismo. Nestas situações, encontram-se, marcadamente, formas diversas de humilhação e sujeição. Caracteriza uma patologia, assim como os demais desvios, quando se expressa de maneira exagerada, ou seja, quando a satisfação sexual fica condicionada à humilhação e sofrimento do outro (ou de si mesmo, no caso do masoquismo).

Devo chamar a atenção para a distinção que existe entre um traço ou atitude perversa que pode estar presente em qualquer tipo de indivíduo, e atos e estrutura psíquica perversos que compõem uma patologia propriamente dita. É fácil constatar que certas extensões que constituem as perversões estão presentes na vida sexual de pessoas sadias e não obrigatoriamente são julgadas por elas como acontecimentos tão absurdos e diferentes de outros. Freud, a respeito disso, escreveu:

“Nenhuma pessoa sadia, ao que parece, pode deixa de adicionar alguma coisa capaz de ser chamada de perversa ao objetivo sexual normal, e a universalidade desta conclusão é em si insuficiente para mostrar quão inadequado é usar a palavra perversão como um termo de censura.” (Freud, 1905, p.163)

Percebe-se em casos efetivamente patológicos de perversão uma capacidade de a pulsão sexual superar as resistências do nojo, da moral, da dor e da vergonha. São essas resistências que restringem a pulsão sexual a certos limites em pessoas normais. Entretanto, mesmo indivíduos que se comportam dessa maneira podem, em outras situações que não as sexuais, apresentar uma conduta normal. Apenas quando uma perversão tem caráter de exclusividade e fixação em vez de simplesmente se pôr ao lado do objetivo sexual normal é que se pode considerá-la um sintoma patológico.

Como se sabe, a respeito das neuroses, os sintomas histéricos são substitutos de processos mentais que, devido ao recalcamento, foram impedidos de ser descarregados numa atividade psíquica consciente. A força dos processos mentais recalcados, acreditava Freud, possuía origem na pulsão sexual. Entretanto, a vida do neurótico apresenta um antagonismo constante: “anseio sexual exagerado e aversão excessiva à sexualidade.” (Freud,1905, p.167) A doença é, portanto, uma forma de escape às pressões da pulsão e a aversão à sexualidade. Freud inclusive afirma categoricamente que no inconsciente de todos os neuróticos existem impulsos de inversão; e mais, é raro que em casos característicos de psiconeuroses apenas uma pulsão perversa se desenvolva.

A maioria dos psiconeuróticos só adoecem após a puberdade, em decorrência das exigências da vida sexual real. Pode acontecer também de as doenças aparecerem mais tarde, quando a libido não é mais satisfeita pelas vias sexuais normais. O que interessa é que, em ambos os casos, é freqüente o aparecimento da perversão como forma alternativa de a libido ser satisfeita. Ainda sobre a sexualidade dos neuróticos, Freud afirma que esta permaneceu num estágio infantil ou, por um ou outro motivo, foi trazida de volta a este estágio.

A respeito dessa regressão à sexualidade infantil, Joël Dor nos dá uma análise elucidativa. A pulsão sexual, conclui Freud, é formada por diversos componentes que, no caso das perversões, se dissociam. Surge, então, a noção de pulsão parcial:

“Nos neuróticos, como na criança, as pulsões parciais dialetizam o conjunto da dinâmica sexual. É porque a sexualidade perversa está sujeita à influência das pulsões parciais que a famosa sexualidade polimorfa é instituída diretamente no centro da organização sexual infantil.” (Dor, 1987, p.78)

Outros objetos e objetivos sexuais, diferentes dos normais, são impostos na infância devido ao funcionamento dos componentes parciais da pulsão sexual, por isso a sexualidade da criança é necessariamente perversa. Esses componentes da pulsão deverão, na puberdade, se organizar, deixando de mostrar a autonomia característica da fase infantil e irá se eleger uma primazia pela região genital. Isso, entretanto, pode não acontecer, e essas pulsões parciais podem ser manifestadas na vida sexual adulta normal sob a forma do prazer preliminar, sendo esta uma tendência perversa. Pode-se então compreender porque se considera que as perversões resultam de uma regressão: os perversos voltam a um estágio da evolução libidinal que é característica da infância e, aí, permanecem fixados.

Passamos agora para o artigo de Freud “Uma criança é espancada: uma contribuição para o estudo da origem das perversões”. Freud constatou ser freqüente em histéricos e neuróticos obsessivos que procuravam tratamento analítico relatos de fantasias em que uma criança é espancada – surgem antes da idade escolar. No clímax dessa situação imaginada, ocorre, quase sempre, uma satisfação masturbatória. Isso acontece, a princípio, voluntariamente, mais tarde, entretanto, é comum a fantasia surgir a despeito dos esforços do indivíduo em contrário, o que possui características de uma obsessão.

Uma sensação de prazer reveste essa fantasia, possibilitando uma satisfação auto-erótica. Quando esse tipo de satisfação que surge no início da infância é mantida, pode-se falar, segundo Freud, de uma característica primária de perversão.

“Um dos componentes da função sexual desenvolveu-se, ao que parece, à frente do resto, tornou-se prematuramente independente, sofreu uma fixação, sendo por isso afastada dos processos posteriores de desenvolvimento, e , dessa forma, dá evidência de uma constituição peculiar e anormal no indivíduo.”(Freud, 1919, p.228).

Essa perversão não necessariamente irá persistir por toda a vida, poderá, adiante, ser recalcada, ser substituída por um sintoma ou mesmo se transformar por meio da sublimação.

As fantasias de espancamento se desenvolvem por três fases. Na primeira delas, marcada pelo sadismo, nunca a pessoa espancada é a própria autora da fantasia e, comumente, é seu pai quem espanca. A segunda fase, considerada por Freud como a mais importante, assume um caráter masoquista em função do sentimento de culpa, então, o próprio autor da fantasia é espancado por seu pai, estando presente uma carga libidinal. Evidencia-se no período em que surgem essas fantasias uma agitação do complexo paternal – destacam-se aí as meninas, nas quais as afeições estão fixadas no pai. A terceira fase da fantasia volta a ser sádica. Uma perversão dessas, com origem na infância, pode se estender e servir de base para uma perversão de sentido semelhante na vida sexual adulta do paciente.

Vale ressaltar, mais uma vez, que Freud enfatiza a influência da segunda fase da fantasia de espancamento para as meninas. Esta fase possui uma importância genital e, contrariamente às demais, é recalcada, desenvolvendo-se como um desejo incestuoso em relação ao pai. O que não significa que não existem casos de fantasias infantis masculinas de espancamento. Inclusive estas podem resultar em pessoas pervertidas sexualmente.

Julguei conveniente dar segmento ao trabalho que me propus – estudo das perversões e um paralelo com o livro Lolita – após estas breves considerações por considerá-las a base essencial para a compreensão das perversões.

“Lolita, luz de minha vida, fogo de meu lombo. Meu pecado, minha alma. Lolita: a ponta da língua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca, a fim de bater de leve, no terceiro, de encontro aos dentes. LO. LI. TA.” (Nabocov, 1955, p.7)

Assim começa a confissão do amargurado Humbert. Nos toma, sem que tenhamos como nos defender, e nos leva a admirar, ou repudiar, sua adoração pela jovem Dolores. E Vladmir Nabokov não teria seu mais famoso livro se não fosse Dolores jovem demais. Em 1955, Nabokov lança seu livro, uma trama que não é estranha à literatura ou à vida cotidiana, mas que foi recebido com grande impacto. Lolita escandalizou e apaixonou o público por se tratar de um livro que expõe o amor, ou desejo sexual, de um homem maduro por uma menina de doze anos.

Em “As aberrações sexuais”, Freud põe em questão algumas idéias que a opinião popular tem acerca da pulsão sexual: a sexualidade infantil, o objeto e objetivo sexuais.

A pedofilia chama a atenção por parecer ao observador um caso indubitavelmente patológico e aberrante, ao passo que outras variações quanto ao objeto não inspiram tal radicalização. É o caso das inversões, no qual o objeto sexual do indivíduo pertence não ao sexo oposto, mas a pes-soas de seu próprio sexo. Um invertido pode ser reconhecido como completamente normal em outros aspectos. Da mesma forma, desvios quanto ao objetivo sexual são bastante tolerados e estão presentes na vida íntima da grande maioria das pessoas.

“Por outro lado, casos em que pessoas sexualmente imaturas (crianças) são escolhidas como objetos sexuais, são imediatamente consideradas aberrações esporádicas. É só excepcionalmente que as crianças constituem objetos sexuais exclusivos. Desempenham esse papel, geralmente, quando se trata de um indivíduo covarde ou que ficou impotente, que as adota como substituto, ou quando uma pulsão urgente (que não pode ser adiada) não pode se apoderar de qualquer objeto mais apropriado.” (Freud, 1905, p.149)

Acontece, pois, que nossa personagem, peculiarmente, faz parte da exceção que adota crianças como objetos sexuais exclusivos, o que torna o caso ainda mais polêmico. Certamente que a perversão de Humbert Humbert não se manifestava por impotência ou incapacidade sua de seduzir mulheres, pelo contrario, é um homem bem apessoado e agradável, de acordo com sua, um tanto pretensiosa, auto-avaliação:

“Permita-me o leitor repetir com tranqüila ênfase: eu era, e ainda sou, apesar de mes malheurs, um homem excepcionalmente belo; lento de movimentos, alto, com cabelos escuros e sedosos e um certo ar sombrio e, por isso mesmo, tanto mais sedutor. A virilidade excepcional reflete com freqüência nos traços exibíveis um certo quê de insociável e congestionado que pertence ao que se tem de ocultar. E esse era o meu caso. Eu bem sabia – ai de mim! – que poderia obter com um estalar de dedos qualquer mulher adulta que escolhesse; na verdade, adquirira o hábito de não ser demasiado atencioso para com as mulheres receoso de que elas caíssem, como uma fruta madura, em minhas mãos.” (Nabocov, 1955, p.25)

Humbert, entretanto, admite, a despeito de seus atributos físicos, su-as dificuldades quanto a vida sexual. Ele supõe que seus problemas provavelmente se devem a uma frustração sua na infância, mas que em nada nos acrescenta no tocante a sua relação com seus pais. Em referência a estes, não manifesta nenhuma recordação desagradável ou intensa. Sabe-se apenas que é órfão materno desde os três anos de idade, diz recordar-se quase nada de sua mãe e refere-se a ela simplesmente como “muito fotogênica”. Sobre lembranças de infância de seu pai, escreve carinhosamente:

“Ele, mon cher petit papa, levava-me a passear de bote e de bicicleta, ensinava-me a nadar, mergulhar e andar de esqui aquático, lia-me Dom Quixote e Os Miseráveis, e eu adorava-o, respeitava-o e sentia-me alegre por ele, sempre que ouvia a criadagem comentar as suas várias amizades femininas, criaturas belas e bondosas que se interes-savam muito por mim, arrulhavam e derramavam lágrimas preciosas ante a minha alegre orfandade.” (Nabocov, 1955, p.9)

O trauma de infância ao qual ele atribui, em grande parte, a origem de sua perversão é o frustrado romance que viveu num verão, aos treze anos, com uma bela menina de mesma idade, Annabel. Com ela experimentou uma intensa e desajeitada paixão, como só se pode experimentar nesta idade. Humbert indaga-se se teria sido aquele verão o desencadeador de sua doença, ou se fora seu “excessivo desejo por aquela criança apenas a primeira manifestação de uma imensa singularidade”. O certo é que relata ter o fatídico verão, após o qual Annabel tragicamente morreu, se tornado um obstáculo a qualquer novo romance durante todos os anos de sua juventude.

A personagem afirma ser capaz de manter uma relação sexual com uma mulher, mas não demonstra nenhuma exacerbação libidinal quanto a isso: “Em minhas relações sanitárias com mulheres, eu era prático, irônico e rápido.” (Nabocov, 1955, p.15) Chegou, inclusive, a se casar, mas é extremamente frio ao concluir que o fez por sua própria segurança. Esforçava-se ao máximo por encontrar mulheres que lembrassem meninas, destaca a sua esposa e uma prostituta parisiense.

A discussão do que se estabelecia ao lado da obsessão deste homem por Dolores é, para muitos, relevante. No decorrer da leitura, nota-se cla-ramente o amor, e mesmo adoração, que ele nutria pela menina, muito embora seja inquestionável o explícito teor sexual de suas intenções. Algumas pessoas acreditam que seu amor por Lolita de alguma forma legiti-ma, ou ao menos atenua, a sordidez com a qual conduz seu envolvimento com a jovem – chegando a casar-se com a mãe, apenas para ter por perto e sob algum controle a filha. Porém, deve-se ressaltar que Humbert delineia toda a trajetória do desenvolvimento de sua perversão, teoricamente surgida com Annabel e sofridamente reprimida (não no sentido de recal-cada) durante longos anos de sua vida, mas sempre a torturá-lo, até eclodir da forma mais intensa ao conhecer Dolores.

Sua perturbação era reconhecida conscientemente, mas não era aceita sem sofridas tentativas de suprimí-la. Dos vinte aos trinta e poucos anos, conta ele, não conseguia entender completamente seus paroxismos. Sua pulsão sexual era explicitamente voltada para crianças, entretanto, não admitia isso de maneira natural. “Ora me sentia envergonhado e assustado, ora inquietamente otimista.” (Nabocov, 1955, p.18) Às vezes convencia-se de que suas fantasias apenas não eram algo doentio, mas que transitar das idéias para o ato, sim, constituiria uma depravação.

É interessante a seletividade quanto às crianças que elegia ao lugar de objeto de desejo. Enganamo-nos em pensar que todo e qualquer menor o atraía. Em primeiro lugar, interessavam-lhe apenas as meninas, mas argu-menta que mesmo aí existe uma diferença enorme. O que o anatomista designaria como feminino, ele subdividia em duas classes que lhe pareciam tão distintas quanto dois sexos: as crianças normais e as nymphets (dos nove aos quatorze anos). Não pretendo me demorar muito neste termo que se popularizou a partir deste livro, mas considero peculiar o requinte de Humbert ao discriminar um grupo de garotas das demais. Diz sempre ter possuído o máximo respeito pelas crianças comuns, com sua pureza e vulnerabilidade.

Algumas afirmações de H.H. nos remetem à tão comum manifestação de perversões em neuróticos. Ele diz ter, durante anos, mantido relações normais com mulheres maduras e, a despeito de sua concupiscência por todas as nymphets, nunca ousava delas se aproximar. As mulheres com as quais lhe era permitido ter relações eram meramente agentes paliativos. Demonstra intenso emprego emocional quando fala de suas fantasias, que, como já mencionei, até então não eram satisfeitas: “O mais vago de meus sonhos polutivos era mil vezes mais deslumbrante do que todo o adultério que o mais viril e genial escritor ou o impotente mais talentoso poderia imaginar. Meu mundo estava dividido.” (Nabocov, 1955, p.18)

Há trechos em que nossa personagem demonstra aproveitar-se de certas circunstâncias, como a amizade que fizera com assistentes sociais e psicoterapeutas e que possibilitavam acesso a instituições como orfanatos e reformatórios. Nestes, como revela Humbert, meninas púberes podiam ser fitadas com total despudor e impunidade, o que o fazia lembrar o que só é concedido em sonhos. A renúncia a qual Humbert se obrigou durante anos de sua vida, portanto, talvez possa ser explicada simplesmente pelo receio de ser preso e condenado. Se não lhe pesasse o medo da punição, provavelmente ele não teria passado tantos anos reprimindo seu desejo.

Já foi mencionado que, a princípio, ele não se sentia confortável diante de sua atração por crianças. A questão é se esse desconforto, e mesmo a vergonha que sentia, não teria origem simplesmente na certeza de que a pedofilia não é algo socialmente aceito, que há aí uma interdição e que ele sofreria duras conseqüências se, inconsequentemente, transgredisse a lei.

Nesse momento de análise do livro, acredito ser de extrema importância que nós nos voltemos para alguns conceitos-chave que a psicanálise nos proporciona e que nos auxiliarão no estudo das perversões. Em sua análise sobre o fetichismo, Freud conclui que, como também acontece nas psicoses, há uma recusa da realidade. No fetichismo existe a recusa da ausência do pênis na mãe, na mulher. Tal como no complexo de castração vivido na infância (nota-se aí uma regressão), admitir que a mãe ou que as mulheres não possuem pênis remete o indivíduo ao medo de poder, ele também, vir a ser castrado. O indivíduo não pode deixar de perceber a ausência física de um pênis na mulher, mas se entrega à convicção oposta. Neste impasse, a saída é o pensamento operar segundo as leis do inconsciente; o homem irá eleger um substituto para o pênis – uma parte do corpo ou algum outro objeto para o qual irá voltar seus interesses. O sujeito, portanto, cria o fetiche para destruir a prova da possibilidade de castração, afastando, dessa maneira, o medo desta.

Como se sabe, na neurose, o processo de defesa em operação é o recalcamento. No caso dos perversos, o que opera é a recusa, que se caracteriza, como se viu, por um paradoxo psíquico – crenças que sobrevivem em contradição da experiência. Apesar de termos trabalhado o exemplo do fetichismo, Freud assinala que o paradoxismo eminente da recusa não é exclusivo dos fetichistas, mas dos perversos em geral. É compreensível, portanto, ser comum o pensamento do tipo “eu sei, mas assim mesmo...”. Proponho fazermos aqui uma extensão desse pensamento para as leis jurídicas, como também morais e culturais. Não seria de surpreender que o perverso, diante de uma interdição, se comporte dessa maneira: “eu sei que não se pode, mas, mesmo assim, o farei”.

Volto agora ao ponto em que paramos. Humbert sabia que não podia ter relações com suas nymphets, e durante alguns muitos anos de sua vida realmente não as teve. Entretanto, se considerarmos também as situa-ções em que gozava em olhar, sem censura, para crianças nos orfanatos e reformatórios, o deleite ao qual se entregava ao fitar meninas brincando nos parques e displicentemente se aproximando dele e mesmo o tocando, podemos construir aqui um suposto discurso seu: “sei que é errado, mas, assim mesmo, meu gozo é em função dessas nymphets”.

Talvez seja de bom proveito analisarmos uma peculiaridade para a qual algumas pessoas não estão atentas ou mesmo consideram irrelevante no julgamento da conduta de Humbert Humbert. Ele era um professor de línguas, vindo da velha Europa, perturbado, para a jovem América. Lolita era uma típica garota americana. Apesar de seus doze anos, percebe-se que, em alguns aspectos, ela era sexualmente mais experiente que ele, ao menos mais do que ele esperava. O fato é que Lolita possuía não apenas a curiosidade sexual típica da puberdade, mas uma sensualidade natural, de modo que são claras suas sedutoras e joviais investidas.
Fica evidente no romance que a relação de Dolores com a mãe não era das mais bem resolvidas. Havia uma competitividade, talvez meramente típica da idade, da parte dela e uma impaciência enorme por parte de sua mãe. A menina parecia divertir-se em chamar a atenção de Humbert fosse ou não para provocar sua mãe, esta demonstrava comprometedora afeição pelo culto professor de línguas.

Pode parecer que está se tentando, a partir de tais argumentos, transferir uma suposta culpa à menina, a fim de atenuar a responsabilidade de Humbert. Esclareço, desde já, as reais intenções. Nos casos em que H.H. nos relata de suas experiências com crianças, era marcante sua posição superior, seja como autoridade por ser professor, ou, no caso do orfanato, por não haver ali ninguém que o censurasse. Era de se esperar que ele, como de costume nas relações entre adultos e crianças, sempre assumisse o controle. Acontecia, no entanto, que Lolita possuía o poder de muitas vezes desarmar Humbert, de desprovê-lo de meios que o permitissem sujeitá-la a seus, frequentemente mórbidos, desejos. O que acontecia era o oposto, ela conseguia manipular as situações, fazendo com que H.H. cedesse a seus caprichos. Tudo isso poderia se explicar, talvez, pela paixão que Humbert insiste, ao longo do livro, em ressaltar.

É verdade, todavia, que o comportamento de humbert vai mudar bastante a partir do momento em que sua esposa, mãe de Lolita, morre e ele assume a tutela da menina. Em verdade, praticamente a seqüestra e a afasta de qualquer conhecido seu. Inicia-se aí uma longa viagem pelas estradas dos Estados Unidos, quando se desenvolve, de fato, o relacionamento sexual dos dois. Humbert, então, vive numa inconstância, oscila em ser amável, cuidadoso e gentil, e subjugá-la. Manipula Dolores por meio de ameaças – de que, se ela não aceitasse viver com ele, iria para um reformatório –, de “subornos”, e chega, inclusive, a roubar suas míseras e-conomias, segundo sua defesa, por medo de uma tentativa de fuga. Sua morbidez se impõe, agora, com toda força e ele desenvolve uma possessividade sufocante, a qual Lolita não pode, somado aos outros tão óbvios motivos, suportar. O sofrimento da pequena Dolly é gritante e a morbidez da situação na qual ela assume uma posição passiva é, algumas vezes, nauseante.

“Lembro-me de certos momentos – chamemo-los geleiras no paraíso – em que, depois de saciar-me dela... após esforços fabulosos, insanos, que me deixavam bambo e listrado de azul, eu a tomava nos braços, afinal, com um mudo gemido de ternura humana (sua pele brilhava à luz do gás néon vinda, através das frestas dos estores, do pátio da estalagem, seus cílios fuliginosos embaciavam-me, os olhos cor de cascalho eram mais vagos do que nunca... enquanto o mundo todo não era senão uma pequena paciente ainda mergulhada na confusão de um anestésico, após uma grande operação) e a ternura se transformava em vergonha e desespero e eu embalava a minha leve e solitária Lolita em meus braços de mármore, e gemia em seus cálidos cabelos , e acariciava-a a esmo, e pedia-lhe, mudamente, que me abençoasse e, no auge dessa agoniada e generosa ternura humana (com a minha alma verdadeiramente dependurada de seu corpo nu, e prestes a arrepender-se), súbito, ironicamente, horrorosamente, a luxúria tornava a nascer e... ‘Oh, não!’, exclamava Lolita com um suspiro dirigido ao céu. E, num momento, a ternura e o azul – tudo se despedaçava.” (Nabocov, 1955, p.318)

O desfecho da história se dá com a fuga de Lolita acompanhada de um velho amigo de sua mãe que escrevia peças teatrais e pelo qual ela havia se apaixonado e reencontrado durante a viagem com Humbert. Não permanece com ele, conhece um jovem rapaz e casa-se com este. Um dia, depois de muitos anos, manda uma carta para Humbert, chamando-o de “querido papai” e dizendo que estava grávida. Pedia dinheiro. Previsivelmente, H.H. se dirigiu para a cidade onde ela morava, remoendo os planos que tinha há três anos de se vingar. Ao chagar na casa de Dolores Schiller, surpreende-se:

“Umas duas polegadas mais alta. Óculos de aro cor-de-rosa. Novo penteado, levantado para o alto da cabeça; brincos novos. Tudo tão simples! O momento, a morte que eu estivera arquitetando durante três anos era tão simples como um pedaço de lenha seca. Ela estava fraca e imensamente grávida. Sua cabeça parecia menor (na verdade apenas dois segundos haviam transcorrido, mas permitam-me que dê aos mesmos máxima e rígida duração possível, tanto quanto a vida possa suportar) as faces, pálidas e sardentas, estavam fundas e suas pernas e braços nus haviam perdido todo o tom bronzeado, de modo que seus pequenos pêlos apareciam. Usava chinelos desleixados.” (Nabocov, 1955, p.300)

Humbert não se vinga, pelo contrário, a ajuda financeiramente. Seu comportamento não se deve, como pode se pensar, à indiferença diante da mulher que tem, agora, a sua frente. “Não podia matá-la, claro, como alguns pensaram. Eu a amava, os senhores compreendem. Era amor à pri-meira vista, à última vista e a todas as outras vistas, sempre.” (Nabocov, 1955, p.301) Então estava o nosso irremediável pedófilo irremediavelmen-te apaixonado por uma moça de dezoito anos (lembre-se que seu interesse suportava até os quatorze) e queria, a todo custo, levá-la consigo e viver ao seu lado para sempre. Lolita se tornaria, não só madura, mas velha, e, a despeito disso, Humbert jurava se dispor a esperar por ela não importava quantos anos se lhe desse qualquer esperança de um dia, quem sabe, voltar.


CONSIDERAÇÕES FINAIS

A perversão é um tema que confere uma riqueza e profundidade na discussão dos mais variados temas e, como de costume na psicanálise, requer a compreensão de tantos outros conceitos. A partir da noção dessa complexidade e da localização fronteiriça com outras psicopatologias, entende-se porque trabalhar a perversão é tão custoso, imagino que inclusive clinicamente, em decorrência da dificuldade na demanda de análise, no diagnóstico e na direção de cura.

Como se pôde perceber, me ative numa compreensão básica, porém essencial da perversão, não havendo a pretensão de partir para uma análise propriamente dita do sujeito em questão, Humbert Humbert, o que, com efeito, não me seria possível fazer. A partir da idéia de recusa, e de que maneira esta opera em Humbert, adquirimos mais um instrumento para refletir sobre a perversão nas relações sociais contemporâneas. É vantajoso estar atento para a exigência de a perversão ser discutida como uma questão temporal, que precisa ser vista de maneira diferente de um século atrás.

Quanto à pedofilia, compreende-se que seja um assunto verdadeira-mente polêmico sendo impossível uma análise unilateral. É crime perante a lei, não obstante, há pedófilos que declaram “Mas elas gostam” e crianças que confirmam terem consentido sem qualquer tipo de ameaça. Mas a questão parece não ser essa. Eliminando-se o pudor em falar do assunto, e tendo em vista a sexualidade infantil, somos obrigados a admitir que tal relação ilícita entre uma criança e um adulto pode ser fisicamente prazerosa a ambos. Este fato não legitima o ato, não o torna saudável, não elimina possíveis repercussões na vida do indivíduo molestado e nem se configura como mais aceitável de acordo com as estruturas sociais.
(Salvador, novembro de 2006)


REFERÊNCIAS

CHEMAMA, Roland (1993). Dicionário de psicanálise. Porto Alegre, Artes Mé-dicas, 1995.

DOR, Joël (1987). Estrutura e perversões. Porto Alegre, Artes Médicas, 1991.

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(Diana Lemos de Seixas Fraga é estudante de Psicologia da UFBA desde o segundo semestre de 2006, quando escreveu este trabalho.)

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