RESUMO
A paranóia pode se converter em princípio gerador da política de segurança nacional. É o que se depreende da análise do livro A Alemanha de Schreber: Uma história secreta da modernidade, de Eric Santner. A mesma paranóia típica de um conjunto de pessoas consideradas doentes pode se manifestar como traço nacional.
Palavras-chave: Paranóia; Alemanha; Schreber
ABSTRACT
Paranoia can become a generative principle of the national security policy. This can be deprehended from the analysis of book Schreber's Germany: A Secret History of Modernity, by Eric Santner. The same typical paranoia of a number of people considered sick may manifest itself as a national trait.
Keywords: Paranoia; Germany; Schreber
Com o fim da guerra fria e o desaparecimento dos adversários do sonho americano, uma onda velada de paranóia toma conta de alguns setores da população. Desaparecido o inimigo real e conhecido, inimigos ocultos são buscados em toda parte. É neste cenário que o professor Eric Santner, titular de cultura alemã da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, escreve o livro A Alemanha de Schreber, já traduzido no Brasil. (1) Suas pesquisas apontam para a relação entre a paranóia e as estratégias políticas dos estados fortes e das ditaduras.
Os distúrbios mentais que atormentam o indivíduo e constituem objeto de estudo dos psicanalistas e de outros profissionais em saúde mental, às vezes, adquirem um alcance surpreendente e migram do plano individual para o social. A mesma paranóia típica de um conjunto de pessoas consideradas doentes pode se manifestar como traço nacional.
Quando o desvario de um líder autoritário estabelece identidade com os anseios de grandes camadas da população, fatos de ordem psíquica, por mais estranhos que sejam aos comportamentos tidos como normais, são legitimados por um mecanismo que Rousseau chamou de contrato social. As pessoas incorporam e implicitamente legitimam atitudes anteriormente condenadas.
A chamada Alemanha de Hitler é um exemplo conhecido do fenômeno, por sinal, bastante desenvolvido no âmbito da cultura germânica. Um caso de paranóia que se tornou célebre nos fins do século XIX ocorreu com o dr. Paul Schreber, juiz presidente da Suprema Corte da Saxônia. Depois de sete anos de internamento em hospitais psiquiátricos, Schreber escreveu as famosas Memórias de um doente dos nervos, nas quais relata situações delirantes envolvendo os limites do poder. Se, por um lado, o paciente tinha o dom de se comunicar com Deus, por outro lado, sentia-se fragilizado diante de atitudes estranhas e "secretas" do seu médico: "mesmo sem estar presente, ele falava diretamente com meus nervos".
O livro de Schreber mereceu a atenção de Freud, que desenvolveu um estudo considerado pela posteridade como um clássico sobre o tema. Mas as manifestações delirantes de grandeza do dr. Schreber não constituem acontecimentos raros nem originais. Elas são bastante comuns no dia-a-dia.
A auto investidura de qualidades excepcionais intimida e seduz as massas, assim como o uso desenfreado do poder provoca a reação de alguns. Kafka deixa de ser o menino castigado, de modo implacável, por um pai autoritário, para se tornar o construtor de um mundo ficcional onde as malhas do poder corrói a tudo e, conseqüentemente, a si mesmo. Por outro lado, Nietzsche povoa o seu castelo de senhores, servos e ídolos mais ou menos na mesma época em que se desenrolava o drama de Schreber. Oprimidos e opressores partilham um mesmo espaço, cujo chão de alcatifas reluzentes é construído pela paranóia.
A Alemanha de Schreber: Uma história secreta da modernidade é o título completo do livro de Eric Santner, lançado em 1996 nos Estados Unidos, cuja tradução é agora publicada pela Zahar. A partir das discussões de Freud, Walter Benjamin, Derrida, Foucault e especialmente de Elias Canetti, Santner estuda as correlações dos distúrbios psíquicos, ocorridos no campo privado, com a esfera pública. A paranóia de Schreber estaria assentada num conjunto de obsessões que viriam a caracterizar o final do século XIX e o início do século seguinte. Obsessões que ganharam forma perceptível na prática nacional-socialista de Hitler e em outros regimes ditatoriais.
O homem moderno, que começa a despontar nos fins da era romântica e se afirma durante quase uma centena de anos, teria, entre as suas características, uma outra, esquecida ou ocultada, agora acrescentada pelo livro de Santner – a paranóia.
Ao identificar as matrizes do caso Schreber, seus poderes e seus inimigos secretos, com os elementos determinantes da história política do nosso tempo, o autor de A Alemanha de Schreber subintitula o livro Uma história secreta da modernidade. Perpassada por uma camada de ironia, a escolha sintetiza uma das teses debatidas. Não é casual, portanto, a eleição de textos literários de Hoffmann e Kafka, por exemplo, ou da imprevisível escritura de Nietzsche.
O trabalho de Eric Santner vem se juntar às mais importantes articulações da psicanálise com as teorias da cultura, dando continuidade a uma vertente inaugurada pelo próprio Freud e seguida por destacados pensadores do século. É por isso que Diana Fuss afirma que "A Alemanha de Schreber é a mais importante publicação de teoria psicanalítica desde O anti-Édipo de Deleuze e Guattari".
Entendendo-se aqui a expressão "teoria psicanalítica" como designação de uma parte dos estudos multiculturais, a afirmativa de Fuss pode ser complementada pela sentença de Slavoi Zizek: "A Alemanha de Schreber é um verdadeiro achado, estabelecendo um novo padrão de uso de idéias psicanalíticas para analisar fenômenos políticos e ideológicos."
Mesmo desconhecendo o entusiasmo destas opiniões superlativas, o leitor não poderá deixar de reconhecer no livro de Eric Santner as qualidades de um estudo honesto e bem fundamentado. Sem pretender ser original, ou descobridor de novos caminhos, como é moda entre a inteligentzia norte-americana, o autor retoma algumas teorias fundamentais e articula num mesmo discurso a análises de fenômenos psíquicos com a interpretação dos fatos sociais.
Deste modo, Santner redimensiona os estudos sobre a psicologia de massa desenvolvidos, nos Estados Unidos, por Elias Canetti, nos fins dos anos cinqüenta (reunidos no livro Massa e poder, em tradução da Cia. das Letras). O tipo paranóico, já estudado como depositário de estruturas fascistas, por Gilles Deleuze e Felix Guattari, é visto "como alguém que manobra as massas" com a arte dos grandes agregadores de multidões a serem organizadas.
Lembre-se que Schreber, por decisão médico-jurídica, foi internado no manicômio público de Sonnenstein. Na sua defesa perante o tribunal (para readquirir os direitos de cidadão considerado capaz para a vida em liberdade), observamos o obstinado poder de argumentação e convencimento do paranóico e a força do seu raciocínio. Mesmo vivendo numa sociedade extremamente tirânica com relação aos doentes mentais, que eram enclausurados como criminosos, Schreber consegue impor seus argumentos aos da psiquiatria carcerária. A energia canalizada pelo paranóico – baseada na crença dos seus superpoderes e armazenada para combater as tramas secretas dos inimigos – transforma as palavras numa verdadeira artilharia de argumentos. É por isto que os ditadores e os regimes totalitários fascinam tanto as multidões submetidas.
Os mecanismos sociais desenvolvidos pelos órgãos de segurança são mais eficientes quando marcados pelos mecanismos individuais da paranóia. Os serviços de investigação e de inteligência, mesmo nos países considerados democráticos, como os Estados Unidos, cultivam suspeitas infundadas e descabidas como princípio básico da sua eficiência preventiva. Quanto mais persecutório for o serviço de segurança, mais chance ele terá de cumprir os seus objetivos. Condutas que a nível individual ou de economia psíquica seriam consideradas como doentias, quando transpostas para os sistemas de segurança do estado, são racionalizadas como mecanismos rotineiros de trabalho.
Na paranóia, o sujeito que tudo pode é também fragilizado diante de perseguidores com motivos secretos. Aí está outro elo entre a paranóia de um indivíduo e os regimes de exceção que governam os países. Do mesmo modo que os ditadores se investem de poderes absolutos, eles se sentem ameaçados por todos aqueles que foram privados de qualquer forma de poder. Os prisioneiros, os desterrados e até mesmo os mortos podem estar tramando secretamente.
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1 Santner, Eric. A Alemanha de Schreber: Uma história secreta da modernidade. Rio de Janeiro, Zahar, 1997, 219. p.