O mito como realidade do homem

Cid Seixas

RESUMO
O mito como forma de conhecimento e estágio inicial da compreensão da realidade posteriormente formulada pela filosofia e pela ciência.
Palavras chave: mito; conhecimento; realidade

ABSTRACT
The myth as a form of knowledge and as an initial stage in understanding reality, later formulated by philosophy and science.
Keywords: myth, knowledge, reality


Habitante de um mundo de prodígios, o homem se vale de nar­rativas fabulosas para explicar as coisas e fenômenos que o ro­deiam. Todos en­cantados. As formas ancestrais da nossa de­sencan­tada ciência compreen­diam o universo através de um dis­curso tão insólito quanto o nosso próprio mundo.

É por isso que o saber mais sensato não desdenha das várias for­mas que a consciência utiliza para ter ciên­cia do mundo. Todas as for­mas de conhecimento, das mais primitivas às mais elabora­das, deriva­das das anteriores, portanto, são igualmente efi­cien­tes na sua tarefa de traçar os con­tornos do real.

A ciência não mais ignora que a mitologia de um povo é um fato de­cisivo como marco fundador da realidade; mesmo quando, através de cons­truções fabulosas, os mitos remetem o observador à perplexidade. É aí, talvez, que surge a oposição entre as formas conscientes e as formas in­conscientes do conhecimento.

Os rituais míticos dão conta de um conhecimento difu­so, ainda não fixado pela consciência, mas decisivo nas inter­venções destinadas à constituição da realidade — um conhecimento inconsciente, portanto. Já o saber da ciên­cia é a sistemati­zação do que o homem foi capaz de captar através da consciência.

As construções do espírito desempenham um pa­pel mais ativo e ba­silar, no que diz respeito ao mundo dos homens, do que as obras mate­riais ou os poderosos fenômenos da natu­reza.

A semiótica, herdeira da tradição que iden­ti­fica a teoria do conhecimento com a teoria da lin­guagem, mos­tra o quanto so­mos falados pela nossa lín­gua, isto é, o quanto somos levados a dizer e a pensar não aquilo que que­remos mas aquilo que somos obriga­dos a pensar, pela forma do nosso discurso e pelo seu comprometimento com as circunstân­cias que a pro­duziram. Ou ainda, evidencia o quanto as nos­sas ações e a nossa ideologia estão de­terminadas pelos idola ou pelos sig­nos da constelação humana.

Um autor do século XVI, o filósofo Francis Ba­con, for­mulou o con­ceito de idola como filtros modifica­dores da rea­li­dade ofere­cida pela natureza. A sua preocupação com a objetividade do conhe­ci­mento teve como conseqüência radical a formula­ção da dúvi­da da validade de toda a filosofia. A designação pro­posta para os condi­cionamentos im­postos ao espírito pelas concep­ções filosóficas (idola theatri) parte do seguinte pressuposto: as verdades dos filó­sofos são como as verdades apre­sen­ta­das pelos poetas trá­gicos ou cômicos no teatro; isto é, são todas fictícias.

Esboçava-se a dicotomia anti-sofística destinada a opor o mundo da cultura, da linguagem, portanto, ao da natureza, predi­cando o atri­buto de falsidade ao primeiro e de verdade ao se­gundo.

Uma das grandes lições trazidas, neste campo, para o pensa­mento do século XX foi a evidência, de­monstrada por Freud, de que os fatos pertencentes à es­fera da realidade psí­quica são mais ti­rânicos para o homem do que os fatos que se originam na realidade material. Isto por­que os fatos ma­teriais, concretos, só se transfor­mam em fatos humanos quando perpas­sam a esfera da rea­lidade psíquica. De certo modo, esta evidên­cia já foi teorizada por Ba­con no Novum Organum, mas com Freud desaparece inteiramente a doutrina valorativa. A cultura não está obrigada a ajustar as suas verdades à verdade da natu­reza, como queria o filósofo seis­centista. Transitando dos mitos culturais aos indivi­duais, Freud faz com que um dos resultados da sua descoberta leve o homem do século vinte a equiparar a realidade psíquica à realidade mate­rial.

O centro é deslocado, copernicamente, dos fenô­menos na­turais para os fenômenos humanos propriamente ditos. Assim como o ana­lista não se interessa pelo que fatualmente acon­te­ceu, mas pelo que o discurso do anali­sante anuncia; não são os fatos efetiva­mente ocorridos que cons­tituem e determinam a vida psíquica do homem, mas aquilo que o homem faz destes fa­tos ou da ausência dos mesmos. Não é um fato objetivo, ou melhor, um fato real, que é o responsável pelo trauma; mas um fato imaginário, que redimensiona e rees­creve a reali­dade.

As disciplinas e ciências mais diversas são obri­gadas a re­pensar continuamente o conceito de real, aban­donando a idéia de uma realidade absoluta dada ao ho­mem, pronta e imu­tável, em favor da concepção da rea­lidade como fruto de um acordo capaz de confe­rir tal es­tatuto a um conjunto de fenô­me­nos eleitos como baliza­dores do real.

Podemos chamar a este conjunto de ações e pon­tos de vista, insti­tuídos e aceitos pela cultura, ou a esta reali­dade soci­al­mente cons­truída, de espaço de conven­ção. Assim, procuramos su­blinhar que se trata de uma eleição, de um con­trato social, que convenciona o que de­vemos entender por realidade e o que devemos expul­sar dos seus limites para ga­rantir a condição de “normali­da­de” à nossa percepção do mundo.

Fechando o círculo, mesmo falando de outros fatos, retornamos à estrutura do mito. Objeto eminentemente cultural, o mito interpreta e constrói os objetos necessários às necessidades e anseios de um grupo cultural.


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