Amarino Oliveira de Queiroz
Estudo comparado do Lazarillo de Tormes, obra anônima espanhola do século XVI, com o Macunaíma, de Mário de Andrade, a partir de considerações sobre a natureza malandra e picaresca dos personagens. O problema da autoria do Lazarillo e os estudos sobre o tema. O anti-herói e o malandro. O picaresco: da literatura espanhola à literatura brasileira.
Palavras-chave: Lazarillo de Tormes; Mário de Andrade; o pícaro e o malandro
ABSTRACT
The present essay compares the Lazarillo de Tormes, anonymous Spanish work of the 16th century with Macunaíma by Mário de Andrade, considering the picaresque or rascal nature of the characters. The essay also brings the following issues: the authorship of the Lazarillo and the studies on the theme; the anti- hero and the rascal and also the Picaresque: from the Spanish Literature to the Brazilian Literature.
Key-words: Lazarillo de Tormes; Mário de Andrade; the picaresque and the rascal.
O LAZARILLO DE TORMES,
PRIMEIRO ROMANCE MODERNO?
Em seu estudo sobre a Vida del Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades, o crítico espanhol Fernando Lázaro Carreter (1999) credita a este romance o caráter de obra inaugural da narrativa picaresca em língua espanhola, reiterando a afirmação de muitos estudiosos que o situam como marco inicial do romance moderno. Tal afirmativa se sustentaria no fato de que, até o aparecimento do Lazarillo, o relato apresentava a figura do herói adulto, um príncipe, um cavaleiro, um refinado senhor consagrado à atividade pastoril etc, com caracteres previamente fixados desde o início, sem que as peripécias e aventuras por ele vividas pudessem operar transformações substanciais em sua trajetória individual.
A partir da obra em questão, a vida do personagem principal é apresentada em constante desenvolvimento, desenrolando-se ao longo de todo o processo narrativo. E é nessa situação de una vida haciéndose que surge o Lazarillo, caracterizando, segundo Carreter, pela primeira vez na história literária, um protagonista pobre e miserável. A sucessão dos acontecimentos por ele vivenciados entre um capítulo e outro é o que nos dá a chave para o entendimento de sua vida, o porquê de sua queda em desonra e o que nos antecipa, também, uma característica presente no romance moderno.
A APARIÇÃO DO LAZARILLO
Em 1554 foram publicadas, sem identificação de autor, quatro edições do romance nas cidades espanholas de Burgos, Alcalá, Amberes e Medina del Campo. Acredita-se, contudo, que uma outra versão, da qual não se conserva notícia, tenha sido lançada anteriormente. Apesar do enorme sucesso obtido naquele país, principalmente pelo seu caráter iconoclástico, de denúncia das hipocrisias e outras mazelas sociais, o Lazarillo de Tormes foi incluído, em 1559, no Índice eclesiástico de livros proibidos.
O fato, entretanto, não impediu de todo a sua propagação, uma vez que exatamente por este motivo começariam a chegar à Espanha diversas outras edições impressas no exterior, assim como várias traduções vieram à luz desde os primeiros anos, datando de 1876 a primeira edição em língua portuguesa, realizada por A. de Faria Barreiros. Em 1573, foi autorizada a publicação de uma nova versão, devidamente expurgada, com a supressão de várias alusões irreverentes e de dois tratados inteiros, dos sete em que a obra está dividida, mais um prólogo. Sua liberação completa se daria somente a partir de 1834.
Em 1992, numa iniciativa da Conselhería de Educação da Embaixada da Espanha no Brasil, foi lançada nacionalmente uma edição bilíngüe, fiel ao texto original em espanhol, com tradução do professor Pedro Câncio da Silva. Em prefácio a essa edição, o professor Mario González (p.11-26) tece alguns comentários sobre o que considera enigmas para os leitores de hoje e que julga interessante relacionar, como, por exemplo, as questões da autoria, do gênero e do anti-heroísmo.
Atribuída inicialmente a Diego Hurtado de Mendoza (1503-1580), pelo menos sete outros nomes figuram como sendo o do autor do romance, dentre os quais se destaca o de Sebastián de Horozco (1510-1580). Mais modernamente parece prevalecer uma aceitação do caráter anônimo do texto do Lazarillo, alavancada pelo fato de que, para a verossimilhança da obra, não faria sentido que outro nome assumisse a função de “autor”, e se é o próprio Lazarillo quem nos conta as fortunas y desventuras levadas a cabo durante sua trajetória. Por outro lado, convém salientar que o mesmo caráter anônimo da obra protegeu o seu verdadeiro autor de retaliações decorrentes das denúncias empreendidas contra o clero e sobre a corrupção social de seu tempo.
O sentido inovador desta obra em termos de modalidade narrativa é o que parece ser verdadeiramente relevante para a história da literatura, no entender de González, uma vez que “o texto anônimo abre caminho para o romance”. Mesmo adotando elementos formais característicos das autobiografias confessionais, o texto do Lazarillo supera o modelo da carta e, ao inscrever-se na ficção, estabelece um terceiro gênero: o romance. A narrativa documental é acrescida de um sentido de paródia dos livros de cavalaria, eliminando o narrador onisciente e substituindo-o pelo narrador-protagonista. Este deixa de ser o herói-modelar para dar lugar ao anti-herói, numa paródia daquele. Cria o leitor moderno, “decodificador de textos cuja estrutura fechada envolve sentidos abertos”, adota propositadamente o “grosseiro estilo” e estabelece o realismo nessa nova ficção, onde o texto é a expressão “do homem existindo no que acontece”.
O Lazarillo se apresenta anti-heróico, “à luz dos heróis modelares” presentes nos romances de cavalaria. Ao contrário destes, que se esmeram num extremado e nem sempre verossímil exercício de virtudes que se projetam “para além de si” e colocam em risco a própria existência, o Lázaro de Tormes aparece como a negação desse heroísmo, “não apenas porque carece de todas as suas virtudes”, mas também porque todos os seus feitos traduzem uma constante legislação em causa própria, opondo-se a um valor fundamental da sociedade de seu tempo: a honra pessoal. Essa derrubada dos mitos da heroicidade se verifica, conforme reitera Mario González, justamente “na denúncia do vazio em que se apóia a sociedade que cultua esse mito”.
O LAZARILLO E O ROMANCE PICARESCO
Pícaro, em seu sentido mais amplo, adjetivaria todo tipo de desocupado ou subempregado que, por uma questão de sobrevivência, fazendo um indiscriminado uso de criatividade, astúcia e malícia, ultrapassaria em suas artimanhas o limiar da delinqüência. Sem ofício conhecido nem consciência moral, entre suas atividades entrariam as de mendigar e roubar, ainda que pudesse também ele encontrar-se na situação de vítima de seus próprios ardis. A narrativa picaresca seria, portanto, um relato da malandragem, uma quase antecipação daquele nosso macunaímico “herói sem caráter” cuja trajetória vem na contra-mão de valores pré-estabelecidos. As picardías do Lazarillo de Tormes seriam, entretanto, na opinião do crítico espanhol Lázaro Carreter, de pouca monta, se comparadas às façanhas dos pícaros posteriores, ainda que acabassem por fundar o modelo de personagem ao qual se ajustará o subgênero picaresco.
Quase cinqüenta anos mais tarde, o escritor sevilhano Mateo Alemán publicaria a Vida del pícaro Guzmán de Alfarache, consolidando o picaresco enquanto gênero e induzindo outros escritores à produção de obras com as seguintes características, já dentro do século XVII:
- o autobiografismo, em que o protagonista narra a sua própria vida, o que lhe possibilita discorrer sobre sua visão pessoal do mundo, amarga e crítica;
- é filho de “pais sem honra”, o que declara cinicamente;
- vê-se obrigado a abandonar seu lar, devido à pobreza;
- em boa parte de sua vida, serve a diversos amos;
- é induzido ao roubo pela fome e, às vezes, pelo vício;
- usa de artimanhas engenhosas para roubar;
- aspira a ascender socialmente, mas não consegue sair de seu estado miserável;
- sorte e desgraça se alternam em sua vida;
- costuma contrair casamento sem honra;
- não narra acontecimentos fantásticos etc.
O ESTILO DA OBRA
O Lazarillo expressa o ideal de “simplicidade expressiva” verificada em muitos escritores renascentistas. Tanto no aspecto narrativo quanto no descritivo não apresenta artifícios: o que a ele preocupa é a exatidão da linguagem adaptada à pobre matéria que trata, pois, como bem reforça Erater, “não poderia ser de outro modo, já que o autor empresta a sua pena a um inculto pregão, que jamais foi à escola: para que a ficção fosse perfeita, era preciso que o Lazarillo de Tormes escrevesse num estilo natural e sem primores”. São escassos os diálogos, embora prevaleça no texto um tom coloquial. Há uma sucessão espontânea das frases, como se não tivessem sido planejadas, e os parágrafos se alongam, observa Erater, “com incisos que a lembrança e a necessidade de ser claro vão ditando a Lázaro”.
PICARESCO ESPANHOL
E MALANDRO NACIONAL
O escritor Mário de Andrade, ao comentar em 1941 as Memórias de um Sargento de Milícias, situou a obra escrita por Manuel Antônio de Almeida como uma espécie de “continuador atrasado” do romance marginal, a exemplo de Apuleio e Petrônio, na Antigüidade, ou do Lazarillo de Tormes no Renascimento, todos protagonizados por personagens anti-heróicos. Ainda que a história seja contada na terceira pessoa por um narrador que não se revela, prática diferente da desenvolvida no romance picaresco, no livro de Almeida se revelam, através do personagem Leonardo Filho, algumas semelhanças com o narrador pícaro: a origem humilde e irregular, a amabilidade, o riso fácil e a espontaneidade no comportamento, embora não aprenda exatamente com a experiência. Para Mário de Andrade, nessas Memórias de um Sargento de Milícias “não há um realismo em sentido moderno”, mas “algo mais vasto e intemporal, característico da comicidade popularesca”, onde Leonardo Filho não seria propriamente um pícaro como os da tradição espanhola, porém uma espécie de malandro inaugural do romance brasileiro, vindo de uma tradição quase que folclórica. E, nesse sentido, anteciparia aquela figura que o próprio Mário elevou à categoria de símbolo em Macunaíma.
Heloísa Costa Milton (1986), em estudo comparativo que se debruça sobre o romance picaresco e o personagem de Mário de Andrade, ressalta que “Macunaíma e o pícaro espanhol se tocam” na medida em que Macunaíma reúne o pícaro clássico e o malandro brasileiro, revelando-nos “uma realização nacional do pícaro tradicional” e sinalizando, dessa forma, para uma nova possibilidade de leitura do herói sem nenhum caráter. As “máscaras-camuflagens” do pícaro narrador, associadas a uma “consciência abandonada e trocada” presente tanto em Macunaíma como em Guzmán de Alfarache, servem, portanto, segundo ela, para “consumar a denúncia social”.
Em entrevista ao crítico Mário Hélio (2001), o poeta pernambucano Marcus Accioly retoma a questão do anti-heroísmo no contexto latino-americano, afirmando que os anti-heróis, que são os seus personagens, encontram verdadeiro habitat na América Latina, representados por figuras como as de Cuauhtémoc, Zumbi, Zapata, Tiradentes, Frei Caneca ou Lampião:
"Não temos heróis, possuímos anti-heróis, heróis pelo avesso. Não se trata do herói brechtiano, mas do herói decaído e destroçado. O nosso herói está sempre na oposição, do outro lado, na outra margem. Na América Latina, o anti-herói luta contra o “herói” instituído. É o oposto dos Estados Unidos que, diante da guerra perdida no Vietnã tem inventado uma verdadeira mitologia de heróis cinematográficos, que continuam indo à Ásia e voltando, através da tela, para resgatar o que só pode ser resgatado pela ficção" (...).
"Na América Latina, não há heróis sobreviventes, mas anti-heróis exterminados. Existem dois provérbios nordestinos que exemplificam o caso dos anti-heróis: “Não ficou ninguém para semente” e “Não ficou ninguém para contar história”. Assim é queimada a semente e apagada a história." (p. 28)
“MALANDRAGEM, DÁ UM TEMPO...”?
Retomando a perspectiva de Mário de Andrade, pode-se dizer que o seu malandro pratica, à maneira dos pícaros, a astúcia pela astúcia, atualizando a picaresca clássica e referenciando a erudição e o artesanato. A partir dessas bases, a crítica a um caráter nacional de se querer “levar vantagem em tudo”, por um lado, e, por outro, o elogio à astúcia e à criatividade como desafio e resposta aos infortúnios da existência, faz-se registrar em diversos momentos da literatura e mesmo da vida brasileira, desde os personagens do cordel nordestino, de onde saiu, por exemplo, um João Grilo, assimilado do imaginário do Cordel por Ariano Suassuna, até os folhetins eletrônicos da nossa teledramaturgia. Permanece, portanto, e também através da ficção, esse verdadeiro exercício dialético da malandragem que, para além do simples discurso literário, parece querer traduzir a metáfora de um anti-heroísmo nacional como atitude. Afinal de contas, como bem cantaria o ex-pintor de parede, ex-morador de rua, professor, músico, intérprete do cotidiano brasileiro e poeta pernambucano Bezerra da Silva, malandro é malandro e mané é mané.
REFERÊNCIAS BILBLIOGRÁFICAS
ACCIOLY, Marcus (2001). “Força e fôlego”. Entrevista a Mário Hélio in Continente Multicultural 04. Recife: CEPE, abril, p. 26-36.
ANDRADE, Mário de (1941). “Introdução” in Memórias de um sargento de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Biblioteca I. São Paulo: Martins Fontes, pp. 5-19.
LÁZARO CARRETER, Fernando (1999). Lengua castellana y literatura. Madrid: Anaya.
LÁZARO CARRETER, Fernando (1972). Lazarillo de Tormes en la picaresca. Barcelona, Ariel.
GONZÁLEZ, Mario (1992). Prefacio. Lazarillo de Tormes. São Paulo: Página Aberta; Brasília: Conselheria de Educação da Embaixada da Espanha.
MILTON, Heloísa Costa (1986). A picaresca espanhola e Macunaíma de Mário de Andrade. São Paulo: USP. Dissertação de Mestrado.
________________
Amarino Oliveira de Queiroz é Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural e Professor da UFRN.