Antonio Dimas
RESUMO
O manifesto regionalista de Gilberto Freyre e a polêmica em torno da data da sua redação. As idéias antropológicas do autor que se configuraram num manifesto implícito. Joaquim Inojosa, porta voz da Semana de 22; Freyre, pensador da cultura brasileira a partir das tradições do nordeste.
Palavras chave: regionalismo; costumes; Gilberto Freyre
ABSTRACT
The regionalist manifesto of Gilberto Freyre and the controversy surrounding the date of its writing. The anthropological ideas of the author that configure an implied manifesto. Joaquim Inojosa, spokesman for Week of Modern Art 22; Freyre, a thinker of Brazilian culture on the basis of the traditions of the northeast.
Keywords: regionalism; customs; Gilberto Freyre
Mal alcançara seus vinte e cinco anos, Gilberto Freyre enfrentou o desafio de editar um número que comemorasse o centenário do Diário de Pernambuco, fundado em 1825. Resultou dessa iniciativa um documento cultural precioso, hoje conhecido como Livro do Nordeste. Com ele inaugurava-se uma carreira intelectual sólida, a de Gilberto, e inauguravam-se, por outro lado, condições para a percepção nova de um largo trecho do país, até então imerso na retórica bacharelesca, no ressentimento ou na auto-piedade. O Livro do Nordeste, em vez de chamar a atenção para o centenário do periódico, preferia demarcar os limites de uma cultura regional, ao mesmo tempo em que dava a largada para a carreira de seu criador, recém-chegado de longa permanência em terras de “Oropa, França e Bahia”.
Dupla função inaugural, portanto, a desse Livro do Nordeste, ainda hoje à espera de quem dele se acerque para avaliá-lo de modo rigoroso.
Porque basta um mínimo de familiaridade com a obra de Gilberto Freyre para se notar, logo nos primeiros parágrafos de uma de suas contribuições, os “Aspectos de um século de transição no Nordeste do Brasil”, como seu estilo monta e constrói a oposição entre Passado e Presente. Basta um mínimo de atenção a esse ensaio para se ter uma antecipação do modo como o ensaísta pernambucano compreendia e exercia seu ofício. E basta um mínimo de sensibilidade intelectual para se localizar nesse documento o germe de uma carreira diversificada e inconformada, prestes a eclodir com ímpeto.
O que primeiro chama a atenção nessa obra coletiva, orquestrada por um moço a quem, poucos meses antes, um capiau anônimo hostilizara em público com o título grosseiro de “fruto bichado da literatura brasílio-ianque” 1, é sua capacidade de recrutar colaboradores originários de ofícios diferentes e de formação intelectual heterogênea, cúmplices todos da tarefa de reabilitação cultural do Nordeste. Arrancar das obrigações quotidianas em que se viam enredados esses colaboradores, que exerciam a política, o jornalismo, o magistério superior, a advocacia, a engenharia, a medicina ou a alta administração do Estado já demonstra habilidade e capacidade de liderança intelectual, uma vez que a iniciativa partia de um jovem de família conhecida, mas de dotes intelectuais ainda incertos, porque não comprovados em público. Além dessa heterogeneidade, que visava uma cobertura multidisciplinar da cultura em questão, na qual se harmonizassem os dados humanísticos com o dado técnico e seco, deve-se salientar que, em sua grande maioria, os colaboradores estavam confiando a um jovem mal saído de universidade estrangeira (e norte-americana, ainda por cima!) um capital intelectual que vinha se acumulando através do tempo e que poderia ser arruinado numa empreitada desastrosa. Afinal, havia razão para um suposto temor se nos lembrarmos de que parte significativa desses homens já tinha seu prestígio profissional e pessoal consolidado. Muitos deles eram vinte ou trinta ou até quarenta anos mais velhos que Gilberto e, portanto, há muito que vinham investindo na própria carreira. Com base nesse intervalo etário, pode-se conjecturar, sem muito risco de erro, que o projeto, embora atrevido, não era aventureiro e se montava a partir de uma segurança intelectual precoce.
Os artigos recolhidos e publicados são testemunho eficiente de um plano abrangente e ambicioso, que tanto poderia contemplar a descrição árida dos municípios pernambucanos ou das ferrovias nordestinas, como poderia descer a delicadezas acerca do artesanato de rendas ou da descrição enamorada de velhas janelas e portões de Olinda e Recife. O Livro do Nordeste rejeita, portanto, as barreiras de campos intelectuais, porque deixa claro, logo no início, que se construiria em cima de um conceito a ser abertamente defendido mais tarde, o de região. O que animava aquele número de aniversário era, proclama um editorial não assinado, a fraternidade regional que levava em conta “as aspirações e os interesses de toda a região, acima dos simples interesses de estado”. 2
Numa clara demonstração de flexibilidade intelectual, o Livro do Nordeste evidencia que rendas e janelas podem conviver, lado a lado, com estatísticas comerciais ou municipais, sem que um desmereça o outro, porque o que está em causa é um “pequeno esforço de estimativa em torno de alguns dos valores mais característicos da região”, conforme esse mesmo editorial.
Jornalismo inquisitivo como esse, preocupado com uma função social que ultrapassasse o dever primário da informação de paróquia, o número comemorativo dos cem anos do Diário de Pernambuco ainda alinhavava os artigos entre si por meio de uma apresentação ligeira, não assinada, na qual fica sugerida a metodologia, bem como a amplitude de concepção do fenômeno cultural defendida por seu editor responsável, para quem o produto cultural é tudo aquilo que emerge da mão humana, independente de sua natureza.
Dessas apresentações anônimas, verdadeiro “lead” moderno, constam resumo do artigo e uma brevíssima informação biográfica sobre seu autor. Observe-se que nessas poucas linhas introdutórias há sempre uma palavra que encarece o tom humanizado do discurso que se pretende informativo, mas sempre animizado. Nesse sentido, a introdução gira sempre, direta ou indiretamente, em torno de semas como “movimento”, “plasticidade”, “vivacidade”, “intimidade”, “colorido”, “sentimento” e “documento”. Sem o compromisso de destacar nenhum em especial, cabe, no entanto, a lembrança de alguns desses comentários. Sobre o artigo de Aníbal Fernandes, o comentarista chama a atenção do leitor para um “ágil escritor”, cheio de “movimento e colorido”; para Otávio de Freitas, “não falta o contacto vivo com os problemas nordestinos de higiene”; no artigo de Samuel Hardman deve-se atentar para o “íntimo ou direto contacto” do autor com a agricultura e a pecuária do Nordeste; Tomás Pompeu Sobrinho, por seu turno, sabe “refugir, [n]os seus trabalhos, [à] aridez melancólica dos técnicos, sem entretanto resvalar na literatice”; Odilon Nestor, ao rememorar os estudantes de Direito, não despreza o elemento pitoresco e constrói suas páginas com “cor e graça”; Eloy de Souza faz “trabalho de quem conhece de perto e através de carinhosa observação o assunto, desenvolvido com verdadeiro luxo de pormenores”; no texto de Ademar Vidal, o leitor vai encontrar “traços impressionistas, vivos e felizes”; no de Manuel Caetano, o comentário justo sobre o jornalismo de Pernambuco, contém certo “sal anedótico” e, às vezes, é “sublinhado a lápis azul pelo traço pitoresco”.
Disposto a deixar claro que informação científica, observação apurada e graça estilística não são instâncias incompatíveis, o autor anônimo, mas não muito, desses comentários introdutórios congrega interesses diversos sobre um chão comum: o de inventariar, de modo orgânico, uma dada produção cultural em vias de extinção, porque ameaçada por conceitos apressados de modernização. Um conceito de modernização que passa, necessariamente, pela devastação da urbs, sôfrega para se livrar da herança arquitetônica passada, que atravanca o fluxo livre e desembaraçado de máquinas modernas e velozes. De modo curioso e anacrônico, montam-se a rejeição ao traçado novo e a repulsa à derrubada de alguns monumentos de arquitetura, como o Arco do Bom Jesus na antiga rua dos Judeus, através de referência explícita à figura do Barão de Haussman, responsável pela enorme reforma urbana de Paris na segunda metade do século passado. Desse modo, algumas legendas também anônimas sob desenhos da Igreja de São Pedro (p. 8) e da extinta Igreja do Corpo Santo (p. 161) deploram a influência tardia do barão francês, cujos ditames urbanísticos não se adequavam inteiramente a uma cidade ensolarada, quente e irrigada como o Recife. O anacronismo manifesta-se quando se toma como referência um reformador de cidade cujo prestígio polêmico se fizera cinqüenta anos antes. Não se trata, portanto, de repelir soluções urbanas contemporâneas, mas outras já envelhecidas de meio século e que haviam sido impostas com estardalhaço pelo Rio de Janeiro do começo do século. No fundo, o que esses comentários deixam escapar é, mais uma vez, a irritação contra aquilo que, na época, Monteiro Lobato chamava de “macaqueação”, simples imitação do estrangeiro, sem assimilação crítica. No fundo, o que Gilberto queria evitar a todo custo é que se desse no Recife o que se dera no Rio, sob a administração de Pereira Passos, a partir de 1904: o afrancesamento precipitado do traçado urbano.
Lido como um ideário implícito, moldado por metodologia também implícita e renovadora, o Livro do Nordeste pode ser tomado como manifestação disfarçada de projeto intelectual, sujeito a erros e acertos, é claro, mas sempre uma declaração de princípios. E se dermos atenção particular aos três artigos assinados pelo organizador do volume, fica mais nítida ainda a indisfarçável inquietação diante daquilo que encontrara ao voltar da sua viagem de formação.
Seria, portanto, ingênuo encarar como aleatórios os assuntos que Gilberto escolheu para comemorar o centenário do jornal pernambucano. Mais que um simples desejo de colaborar ou de marcar ansiosa presença juvenil, seus três artigos – “Vida social no Nordeste. Aspectos de um século de transição”; “A pintura no Nordeste” e “A cultura da cana no Nordeste. Aspectos do seu desenvolvimento histórico” – fornecem indícios precoces de uma carreira futura, que iria basear-se em assuntos locais e modelar-se dentro de uma rigorosa abordagem plástica, sem prejuízo do lastro científico.
Tanto o primeiro, como o seguinte, abrem-se com a noção de repartição vertical, implícita no contraste entre “superfície” e “profundidade”. Em ambos, Gilberto começa por acentuar a discrepância que se observa entre a “crosta” de um objeto e a sua intimidade. No caso da “Vida social no Nordeste”, o cotejo entre 1825 e 1925 permite-lhe constatar profunda mudança da fisionomia social do Nordeste, decorrente, sobretudo, das alterações das técnicas de produção: “A própria paisagem, o próprio físico da região, alterou-se profundamente. É outra, a sua crosta. Outra, a fisionomia”. (p. 75). No caso de “A pintura no Nordeste”, lamenta ele que essa crosta não tenha sido perfurada, que os artistas se limitassem a uma visão epidérmica da região: “a paisagem e a vida do Nordeste brasileiro acham-se apenas arranhadas na crosta: nos seus valores íntimos continuam virgens”. (p. 126). Através de “A cultura da cana no Nordeste” Gilberto aponta para o principal fator econômico que respondeu pela glória, pela transformação e pela decadência da região.
Mas é “Vida social no Nordeste. Aspectos de um século de transição” que representa verdadeira súmula de uma carreira futura. Em seus primeiros parágrafos já se pode tatear como o jovem estudante, recém-chegado de suas andanças acadêmicas, esculpe e constrói, estilisticamente, sua oposição entre Passado e Presente.
Começa GF o seu artigo, denunciando uma perda que vitimou o Nordeste. Em 1925, constata ele, “perdeu a paisagem aquele seu ar ingênuo dos flagrantes de Koster e de Henderson” (p. 75). No lugar desses desenhos individualizados, produzidos um a um por mão artesanal, sobrevieram “modernas fotografias de usinas e avenidas novas”, incapazes de recuperar a aura singularizada de sítios específicos. A fotografia industrializada, múltipla e indistinta, levou de roldão o momento único fixado pelo olhar único. O individual foi engolido pelo coletivo. Cem anos depois de 1825, a ingenuidade cedeu lugar à automação; despersonalizaram-se as relações de trabalho e de produção; a horizontalidade familiar e meio religiosa das casas-grandes foi substituída pela verticalidade agressiva e espalhafatosa das modernas usinas; o traçado aleatório e, eventualmente curvo, herança européia, dos aglomerados urbanos foi soterrado pela eficiência e pragmatismo da linha reta, herança norte-americana. Nessa transformação tumultuada, assusta-se o observador, que, antes, era embalado pelo “trote doce” (p. 75) das carruagens e agora sente-se ameaçado por mecânicas engenhocas barulhentas que rodam, espadanam e roncam, quebrando o silêncio e intensificando a mobilidade e o “ciganismo de hoje” (p. 76).
Inconformado perante essa súbita alteração da “crosta”, o cientista social desobedece às regras da objetividade, dramatiza seu texto e lança o projeto urgente de recuperar o “ubi sunt”. Do vernáculo, arrancou ele o material com que refaria a plasticidade que detectava em todo canto geográfico e histórico de seu chão; da História, cultivada na companhia de Oliveira Lima, extrairia ele a informação a ser processada em formato novo; da Antropologia, aprendida nas vizinhanças do Harlen, no “melting pot” de Manhattan, sacaria ele um novo ponto de fuga para a compreensão do negro brasileiro. A tarefa era, portanto, a de restaurar um pedaço do país, cuja glória se esfumaçara com a mudança do nosso eixo econômico.
Em “A pintura no Nordeste” Gilberto lamenta que o artista plástico tenha apenas arranhado a crosta da paisagem; em “Vida social no Nordeste” lamenta ele também que os tempos mudaram e que é outra a fisionomia social da região. Cerzindo-se as duas passagens e retidas as informações que se desdobram a partir delas, eis aí uma proposta camuflada e intrincada, que o bom leitor poderá tomar como convite a uma reflexão em que se misturam, sem preconceito, ciência e poesia. Numa, adverte o crítico de artes que não se conforma com a insensibilidade dos artistas locais; noutra, resmunga o historiador que não se conforma com a perda de um mundo pessoal.
E é exatamente nessa mistura, em que se engalfinham lucidez com nostalgia, que reside o canto de sereia do discurso gilbertiano, diante do qual se requer atenção concentrada, por causa de seu caráter idílico.
Talvez se pudesse dizer que, em “A pintura no Nordeste”, engasta-se uma sugestão formal para a abordagem dos assuntos que se espalham com fartura em “Vida social do Nordeste”, configurando-se ambos, pois, como verso e reverso de uma mesma medalha. Lidos em conjunto, complementam-se e sugerem caminhos. O primeiro sugere a forma; o segundo, a matéria.
Porque não é com sussurros que Gilberto apela em favor da plasticidade, saudável ou mórbida, que, segundo ele, pode ser detectada com facilidade no cotidiano presente ou passado de Pernambuco. Sua insistência é no sentido de que fossem abandonadas convenções plásticas européias, substituindo-as por temas que dissessem mais da região nordestina. “Já devêramos na verdade ter passado a idade passivamente colonial de decorar edifícios públicos com as figuras das quatro estações que não representam aspectos da nossa vida; com os Mercúrios; com os eternos leões e as eternas moças cor de rosa e de barrete frígio”, previne ele. Porque essas convenções pseudo-artísticas estão muito “distantes da realidade da nossa história natural e da nossa história social”... (Livro do Nordeste, p. 127).
Imaginando “uma decoração mural de proporções épicas” (Id., ib.) que pudesse dar conta de quatrocentos anos de produção de açúcar e de história nordestina, em vez de festões e guirlandas repletas de mulheres de pomos fartos e rodeadas por querubins duvidosos, Gilberto lamenta que os pintores locais ignorem o “luxo de matéria plástica” (Id., ib.), abundante na região e que um dia fora aproveitada por estrangeiros como Franz Post ou Albert Eckhout, “hóspedes do assunto, tanto quanto o foram da terra” (Id., p. 128).
Talvez tenha sido para satisfazer essa necessidade neo-romântica de cor local que Manuel Bandeira, o poeta, encaminhou sua famosa “Evocação do Recife” para o volume de aniversário do Diário de Pernambuco. Saltando como verdadeiro “tour de force” mnemônico entre as páginas centrais do volume, esse poema condensa, de modo altamente afetivo, a memória perdida do Recife, em três páginas exatas. Cada verso seu é uma lâmina geológica a denunciar um tempo pretérito. Nele, as brincadeiras infantis misturam-se com pecados veniais e com interdições que provocam gozo; sustos e prazeres inaugurais confundem-se com a descoberta de uma língua desobediente e molecona; a pontuação, ou a sua falta, perseguem o atropelo da lembrança. Instalado bem no meio do Livro do Nordeste, espapaçando-se dentro de suas páginas, “Evocação do Recife” orquestra o caráter memorialístico do volume, ao mesmo tempo em que sua flexibilidade métrica, em si renovadora, desbarata a diagramação sisuda que espartilhava cada artigo em quatro severas colunas, aqui ou ali interrompidas por uma ilustração disposta a quebrar-lhe a simetria. Enquanto isso, um outro Bandeira, também Manuel, mas desenhista, dividia-se em sua colaboração, ora perseguindo o traço realista que o ajudasse a restaurar a imagem antiga do Recife, ora estilizando alguns vegetais como o xiquexique, que enfeita artigo de Gilberto sobre “A pintura no Nordeste”. Traço mais atrevido que o deste Bandeira, só o de Joaquim do Rego Monteiro que oferece ao leitor uma “Impressão do Recife novo” ou o perfil de um mamoeiro estilizado (p. 123).
A proposta de Gilberto, agora que chegara de viagem, era a de enfatizar aos nativos a necessidade de se afastar das tentações falsamente modernizantes e dos empreendimentos que cheiravam a um francesismo tardio ou a um americanismo mal digerido. Mais que um simples projeto estético, o seu era de uma abrangência decidida e declaradamente cultural, em que pese a má vontade da academia contemporânea. Sem nenhuma modéstia recalcada, Gilberto tomou o seu chão como um “case study” experimental e se atreveu a propô-lo como exemplo de meditação regional, numa época em que a oligarquia cafeeira paulista optava por queimar todos os seus cartuchos para se mostrar contemporânea da arte européia. Dá-se, então, nessa década de 20, um fenômeno cultural extraordinário de complementaridade: o projeto de renovação cultural do país repartia-se, abrindo espaço a dois segmentos dignos de respeito. No sul, tentava-se o emparelhamento com a arte européia, insistindo-se na fundamentação basicamente estética e reprimindo-se, com isso, qualquer surto de veleidade regionalista, em princípio. Buscava-se uma arte urbana, talvez porque São Paulo quisesse se firmar como criação deste século 20 e de outros futuros, não de anteriores. Auto-imagem pretensiosa e obnubilada, sem dúvida, mas que aproveitava a vaidade dos cafeicultores transoceânicos, ao mesmo tempo em que se jogava para baixo do tapete uma herança histórica rala ou mal conhecida e trabalhada, se comparada com a do Rio para cima. Quando muito, tirou-se proveito do mito do bandeirante intrépido, desbravador e seminal, voltado para o futuro. Uma São Paulo que não fazia muita questão de se lembrar de sua vida ronceira, pouco antes da industrialização agressiva. Não fosse outra vez Manuel Bandeira, o elo permanente entre Gilberto e Mário, a imagem matuta se perderia: São Paulo era a Sé Velha / Cercada de sobradinhos coloniais, na qual o antigo Largo de São Bento com as árvores nuas e magrinhas / pedia tanto um pouco de neve que lhe desse um arzinho de Paris.3 Mito por mito, no nordeste, desrecalcava-se esse regionalismo, escancarava-se o pesado passado rural e colonial, assumiam-se as raízes longínquas, com fundamento na sociologia e na antropologia. Mais ao sul, a caipirice não era matéria para discussão favorita de paulistanos ilustrados. Tanto é que Monteiro Lobato ficou fora da festa modernista e o seu Jeca não pisou no Municipal. Sua botina rinchava alto demais.
Hoje em dia, bem vistos à distância os ânimos e as vaidades pessoais, talvez fosse o caso de conglomerar as duas cidades numa perspectiva cultural mais ampla, dentro da qual cada uma delas exerceu seu direito pleno de manifestação de identidade em formação, em vez de antagonizá-las. A rigor, foi um raro privilégio podermos contar, em cada lado, com figuras poderosas e emblemáticas, jorrando idéias aos borbotões: no nordeste, Gilberto; no sul, Mário. Hoje, mais de meio século depois, fica a certeza de que ambos desempenharam papel mais complementar que adversário, o que não significa, em absoluto, que se queira pasteurizá-los, extirpando-lhes as divergências, em nome do hábito execrável da conciliação nacional, que tanto atravanca nossa política. Como lembra muito bem Gilda de Mello e Souza, em artigo recente, “embora de personalidades muito diversas e vistos freqüentemente como antagonistas, Mário de Andrade e Gilberto Freyre representam num dado momento, duas das posições mais interessantes e fecundas do pensamento nacional” (Souza, 1995, p. 44).
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Neste contraponto em fase de construção, no qual a simetria e a dissimetria certamente disputarão lugar, há inúmeros aspectos a serem considerados. Um deles, por exemplo, esbarra na questão do “caráter” do brasileiro, problema que atravessou o caminho de Mário e Gilberto. Como se colocou esse problema para os dois? Como Mário e Gilberto se posicionaram para avaliar esse item que puxa o da identidade nacional?
Com Macunaíma, em 1928, o modernista de São Paulo tenta encarar a questão, deixando muito claro, já no subtítulo de sua rapsódia, que seu herói não tinha nenhum caráter. Mais que fanfarronice ou bizarria “pour épater”, foi dentro desse enquadramento que Mário realmente desenhou seu personagem engraçado e espeloteado. Segundo confissão dele, em prefácio que seqüestrou da primeira edição, sua obsessão do momento era a de “trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que parece certa: o brasileiro não tem caráter”.4 “Com a palavra caráter”, insistia Mário, “não determino apenas uma realidade oral não em vez entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes, na ação exterior no sentimento na língua na História na andadura, tanto no bem como no mal”. Para o autor de Macunaíma, o brasileiro ainda “está que nem o rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas, ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma”. (p. 289).
Oposta era a visão de Gilberto Freyre pouco antes desse momento, quando se aprontava para inaugurar o 11º Congresso Regionalista do Recife, em fevereiro de 1926. Para ele, era possível, sim, determinar um “ethos” brasileiro, mesmo que fosse restrito a uma região específica, como o Nordeste, por exemplo. Em vez de se preocupar com uma reflexão que o empurrasse a pensar o país em sua continentalidade heterogênea, Gilberto preferiu limites geográficos mais modestos, seja porque ainda estivesse sob o forte impacto de movimentos congêneres europeus e norte-americanos, seja porque, segundo seu ponto de vista, a segmentação do país em regiões era mais fecunda, de um ponto de vista político e cultural. “Um Brasil regionalista”, afirma ele em artigo no dia em que se inaugurava o Congresso Regionalista, 7 de fevereiro de 1926, “seria um Brasil não dividido, mas respeitando-se nas suas diversidades e coordenando-as num alto sentido de cultura nacional. Um Brasil livre de tutelas que tendem a reduzir a feudos certas regiões”. (Azevedo, 1984, p. 231)
Apegado a esse princípio regionalista, em cuja essência aninhava-se um tradicionalismo às vezes perigoso, quando não francamente reacionário ou pitoresco, como, por exemplo, na passagem em que defende a educação exclusivamente domesticada da mulher ou a decoração de restaurantes com “umas palmeiras, umas gaiolas de papagaio, um caritó de guaiamum à porta e uma preta de fogareiro fazendo grude ou tapioca” (Azevedo, 1984, p. 235), Gilberto levou adiante o seu projeto e bem mais tarde, já em 1952, deu-lhe forma definitiva através deste documento que se chama Manifesto Regionalista, do qual se conhecem várias edições e uma sacudida polêmica. Quem a levantou com estardalhaço foi Joaquim Inojosa e quem a sistematizou de modo sereno foi Neroaldo Pontes de Azevedo em seu trabalho obrigatório sobre o Modernismo e Regionalismo, voltado para os anos 20 em Pernambuco.
Em resumo, deu-se o seguinte: logo que saiu a primeira edição desse manifesto, em 1952, Gilberto Freyre garantia que só então pudera retomar para publicação um texto que já estava pronto em 1926, por ocasião do Congreso Regionalista. Em 1965, Wilson Martins desconfiou da autenticidade dessa afirmação e em 1968 Joaquim Inojosa provocou um “J’accuse” através de uma obra farta de documentação, mas mal estruturada e desengonçada, cujos três volumes se chamam O movimento modernista em Pernambuco. Depois destes volumes, Inojosa voltou à carga de novo, com dois outros libelos tão desajeitados quanto o primeiro: Pá de cal (1978) e Sursum corda! (1981).
Tudo indica que, de fato, Gilberto maquilara seu passado, neste caso, e que Inojosa tem razão. No entanto, não são suas peças acusatórias, de indisfarçável desordem e alta promiscuidade documental, que haverão de golpear a inteireza e a pertinência da proposta de Gilberto, mesmo que tradicionalista e/ou retocada. Como muito bem lembra Wilson Martins, “jamais poderemos exagerar o valor histórico e documental” do livro de Inojosa, (Martins, 1994, p. 102) cujo ardor reivindicativo acabou por empaná-lo.
A obsessão cronológica e nominalista de Inojosa faz sentido quando a percebemos dentro de um contexto de vaidades ofendidas e modeladas em jargão provinciano. Inojosa ofende-se porque embaçaram-lhe a glória que lhe foi surrupiada, a glória de ter sido embaixador intelectual junto à corte modernista em 1922, quando visitou São Paulo por ocasião do Centenário da Independência e teve, portanto, a oportunidade de ver de perto os próceres da renovação literária em curso na capital: Menotti, Mário, Oswald, Tarsila, Guilherme, Rubem Borba e outros. Inojosa reclama prioridade, porque o primeiro número de sua Mauricéia, revista que “apresenta estudos sobre o grupo modernista (futurista) que, no Sul, agita a bandeira de uma literatura renovada, na trilha dos ideais expostos na Semana de Arte Moderna” (Azevedo, 1984, p. 50) é de novembro de 1923. Inojosa se injuria porque sua carta sobre A arte moderna, embora publicada em julho de 1924 na revista Era Nova da Paraíba, não conseguiu a repercussão que o Manifesto de Gilberto conseguiria mais tarde, mesmo que sob efeito retroativo.
Afora essa argumentação que se apóia no caráter diplomático da viagem de Inojosa e na sua precedência cronológica, quais outras poderiam ajudar a elucidar essa pendenga?
Talvez coubesse aqui a rápida lembrança das potencialidades intelectuais de cada um dos litigantes diretamente envolvidos no conflito, a extensão e a densidade de cada um dos projetos individuais, além, é claro, de uma palavra sobre a total falta de senso de oportunidade de um deles.
O deslumbramento confesso de Inojosa perante os intelectuais de São Paulo tornara-se forte inconveniência num contexto intelectual que batalhava pela sua auto-afirmação, herança que já vinha de um Franklin Távora ou de um Sílvio Romero e que, em determinados momentos, exacerbava-se segundo o fluxo da política e da economia nacional. Anos depois, quando Inojosa explicita esse sentimento de júbilo novidadeiro, tem-se boa medida das emoções e das vaidades em jogo, que redundaram em cansativa diatribe: “Achava-me ainda sob a impressão dos contactos com os líderes da Semana de Arte Moderna,” – admite o jornalista, tempos mais tarde – “manifestados em homenagens prestadas ao jovem estudante de 21 anos de idade, que viajara ao Sul numa embaixada de estudantes de Direito ao I Congresso Internacional de Estudantes e às festas do Centenário, e que ali fora pela curiosidade de conhecer a locomotiva que carregava vagões vazios da Federação Brasileira”. (Inojosa, 1981, p. 63).
Se tantos anos depois do evento, o que ainda perdura é uma atitude submissa e embasbacada de quem se sentira digno de se aproximar dos pontífices máximos do modernismo paulista, pode-se imaginar como operaram esses sentimentos no momento em que brotaram dentro de um ambiente que se preparava para a “unificação da vida cultural nordestina”, para a “defesa da fisionomia arquitetônica do Nordeste, do patrimônio artístico e dos monumentos históricos” e para a “reconstituição de festas e jogos tradicionais”, segundo se pode ler no convite ao Congresso Regionalista, assinado por Odilon Nestor e Gilberto Freyre (Azevedo, 1984, p. 154). Inojosa entrara em festa errada. Naquele momento, o que esse grupo recifense mais queria era distância da subserviência cultural histórica, porque o que estava em causa era exatamente a auto-afirmação de uma cultura regional. Seus defensores estavam cheios dos “vagões vazios”.
É claro que em toda a documentação a respeito da tensão Recife-São Paulo não se vai fisgar nenhuma declaração explícita de antagonismo ou hostilidade, mesmo porque isso poderia ser interpretado como admissão de hierarquia intelectual e, por conseguinte, de valoração. No entanto, dadas as peculiaridades do meio intelectual, no qual pouco ou nada se disfarçam egos imensuráveis, é pertinente supor que se montava enorme rota de colisão à beira do Capibaribe e que se torcia o nariz para o produto que Inojosa carregava em sua mala de turista aprendiz. O jornalista fora desastrado. Seu entusiasmo juvenil não se apercebera de que sua missão encarnava exatamente o que se combatia naquele então: a hegemonia cultural do sul brasileiro, ponta aparente de um iceberg mais profundo.
Independente dessas indisposições puramente pessoais, mas capazes de alterar de modo significativo o curso da história, é preciso levar em conta, mais que elas, insisto, o alcance da atividade dos dois antagonistas no quadro da modernização cultural do Nordeste. E se hoje se aceita sem relutância que o Manifesto Regionalista só veio a público em 1952 e que, portanto, não pode ser tomado como documento fidedigno de posições defendidas há setenta anos atrás, não se pode, por outro lado, fazer de conta que tudo depende dele, porque um outro documento, o Livro do Nordeste, pode perfeitamente informar sobre as pretensões em voga naqueles anos na capital de Pernambuco. E, ao sumariá-las, abrindo espaço para toda uma documentação de caráter nitidamente histórico, antropológico, social e econômico, o livro em homenagem ao centenário do Diário de Pernambuco indica os campos intelectuais sobre os quais se pretendia agir. Folheando-o, fica claro que, diferente da renovação pregada em São Paulo, o literário não era prioridade absoluta. Num primeiro momento, pelo menos, São Paulo tinha em mira a Estética; Pernambuco, a História. Estética e História eram, pois, o alicerce dos dois movimentos e o que ocorreu depois, em torno de ambos, foram desdobramentos, de enorme qualidade, sem dúvida, mas que se seguiram no rasto do primeiro.
Nesse sentido, se ainda tomarmos a carta literária que Joaquim Inojosa dirigiu aos diretores da revista paraibana Era Nova e que pode ser considerada como o primeiro documento a exigir, no Nordeste, a transformação literária da ordem vigente, não se pode deixar de nela detectar um alcance modesto e ainda dependente de referências bastante ultrapassadas para quem ambiciona renovar todo um sistema artístico. Segundo o próprio Inojosa, essa carta, denominada A arte moderna, era “desdobramento da campanha que [ele, Inojosa] vinha realizando naquela capital desde 30 de outubro de 1922 e representava o pensamento lógico da pregação constantemente feita através de jornais e da revista Mauricéa” (Inojosa, 1981, p. 58), fundada em fins de 1923.
Uma leitura atenta de A arte moderna redunda em prejuízo para seu próprio autor, porque vaza-se ela em tom altamente retórico, que não define, nem concretiza o que se entende por “novo”. Além disso, suas referências culturais, além do inevitável Sul maravilha, circunscrevem-se a um mundo caduco, onde pululam musas, olimpos, parnasos e danunzios. Sintoma inequívoco, entre outros, de um discurso que depende do passado, em vez de propor um futuro, é quando Inojosa atribui a Graça Aranha a chefia do movimento e considera a Estética da vida como um livro que haveria de “revolucionar, pelo estilo e pelas idéias, as letras pátrias”. (Inojosa, 1981, p. 106)
Ora, com esta menção às letras pátrias aperta-se mais o cerco em torno do próprio autor do manifesto, cujo horizonte de modificação possível não ultrapassava o da literatura. Mesmo que, do ponto de vista rigoroso da precedência cronológica, seu manifesto tenha sido o primeiro a agitar “o credo da Arte nova, rezado, pela primeira vez, na Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal de São Paulo” (Inojosa, 1981, p. 97), não se pode omitir, sob pena de avaliação distorcida, que seu texto é tiro de curto alcance. Inojosa não cria, não elabora, nem articula um projeto. Sua função foi bem mais simples: a de transmitir o recado de uma novidade assimilada com susto. O contraste entre a atitude de Inojosa e a de Gilberto reside na qualidade da elaboração intelectual de suas vivências. Enquanto Gilberto cria mitos novos, Inojosa repete-os.
Incorreu em erro Gilberto quando falseou a datação deste Manifesto, sem dúvida. Não era preciso lançar mão desse expediente, quem, anos antes, já tinha criado uma das obras fundamentais para a compreensão da sociedade brasileira, reconhecida por intelectuais de vários espectros ideológicos e de várias latitudes, nacionais e internacionais. Comprove-se isto através de sua vasta bibliografia passiva, na qual se salienta Gilberto Freyre: sua ciência, sua filosofia, sua arte, ensaios sobre os 25 anos de Casa Grande. Não era preciso retocar o passado quem já dera provas sobejas de reestruturá-lo em termos tão amplos e com apoio científico tão atualizado, atiçando-nos, de quebra, a imaginação com estilo tão trabalhado e tão sedutor. Não era preciso recorrer a esse expediente quem já fora capaz de habilitar a cultura negra, resgatando-lhe a dignidade e dobrando a crista da branca arrogante e racista. Por fim, não era preciso, porque, desde que fora publicado Casa Grande & Senzala, em 1933, Gilberto construíra uma carreira que só fizera consolidar seu prestígio intelectual. Não haveria de ser o retoque de um manifesto que iria comprometê-la.
No entanto, ele aí está e não se pode ignorá-lo, mesmo que seja produto tardio de uma inteligência precoce. Porque, invertendo os termos do problema, podemos acatá-lo como uma espécie de balanço conceitual e de reafirmação ulterior de posições em gestação no distante ano de 1926. Uma espécie de “profissão de fé” reiterativa que pode muito bem servir de escora para um confronto com o projeto do modernismo paulista, no intuito de estabelecer-lhe as diferenças.
Nesse sentido, nada mais significativo que o Manifesto tenha incrustado em seu título, de forma clara e indiscutível, o adjetivo “regionalista” e que abra seu primeiro parágrafo fazendo menção explícita à “velha metrópole regional” do Recife.5 Ao talhar de forma tão clara o tempo e o espaço, aprofundando aquele e apertando este, Gilberto acentua e materializa os limites que pretende atingir, ao mesmo tempo em que se confere autoridade intelectual a si mesmo, na medida que fala de um “locus” cercado e saturado de densidade histórica própria. Mais que a sua fala pessoal, o que desponta é a fala da cidade ou de uma região, no máximo, da qual ele é simples intermediário.
O Manifesto retoma, anos mais tarde, aquilo que fora explicitado sem floreios no Livro do Nordeste, isto é, o auto-centramento como forma de reabilitação e de recuperação cultural em momento de desfoque regional. Nessa questão de ênfase à hegemonia pode estar a motivação oposta de Mário de Andrade, que investiu pesado na direção exatamente contrária, ao se sentir seguro do primado paulista. Para Mário, o item do regionalismo passava longe ou, mais que isso, deveria ser posto de escanteio, de propósito. Talvez porque não sentisse na carne o problema das hegemonias culturais é que sua voz clamasse pela homogeneidade do país. Pelo menos é isso que se depreende dos prefácios seqüestrados do Macunaíma, onde se encontram declarações como estas: “Um dos meus interesses foi desrespeitar lendariamente a geografia e a fauna e flora geográficas. Assim desregionalizava o mais possível a criação ao mesmo tempo que conseguia o mérito de conceber literariamente o Brasil como entidade homogênea”, concepção que a história haveria de invalidar, é claro. É por causa desse desrespeito deliberado que o Brasil, em Macunaíma, “aparece desgeograficado no clima na flora na fauna no homem, na lenda, na tradição histórica”.6
Intenções simetricamente opostas, a do Manifesto e a de Macunaíma, mas que confluem para o leito comum do ineditismo, uma vez que nenhum dos dois textos veio a público na época em que foram elaborados. Por motivos diversos, ambos foram seqüestrados.
De volta ao Recife, em 1923, Gilberto trazia em gestação sua obra inaugural, que viria a público dez anos depois. Mesmo impugnando a data de seu Manifesto, outros documentos, como o mestrado defendido anos antes ou os artigos do Livro do Nordeste, atestam sua atualização científica e cultural, além de serem depoimentos eloqüentes a favor de sua criatividade estilística e sociológica.
Hoje, passados tantos anos, temos condições de reconhecer sua atualidade se nos detivermos, por exemplo, nos movimentos culturais que pululavam pelas Américas e pela Europa. Basta explorar uma antologia extraordinária como a de Jorge Schwartz, sobre as Vanguardas latino-americanas, em cujo interior tropeçamos com um conjunto exuberante de polêmicas, manifestos e textos críticos, para nos certificarmos de que a questão da identidade nacional, y compris o componente étnico, era moeda corrente em culturas próximas, mas apartadas entre si. Um exemplo entre vários outros, lembra Schwartz, é a conferência que o envolvente Fernando Ortiz faz em ambiente adverso, numa Madri branca, católica e fascistóide, em 1928, quando Primo de Rivera aplainava o caminho para Francisco Franco. Autor dos extraordinários Contrapunteo cubano del tabaco y el azucar e de El huracán, obras de antropologia cultural muito próximas do tom freyreano de reconstituição histórica, Ortiz deixa muito claro que é preciso abolir a concepção física de raça, substituindo-a pela perspectiva cultural, porque “a cultura une a todos” enquanto que “a raça somente aos eleitos ou aos malditos” (Schwartz, 1995, p. 594). Como admite o prefaciador desse generoso volume de prefácios e manifestos, “uma outra conquista, absolutamente digna de nota, comum a intelectuais entre si tão diferentes como Ortiz, Mariátegui e Gilberto Freyre, foi a superação, que todos eles empreenderam, da idéia de raça. Nesses anos pré-nazistas”, acentua Alfredo Bosi, “a inteligência latino-americana deu um salto qualitativo que seria irreversível”( (Schwartz, 1995, p. 27. Grifo nosso).
É bem verdade que o negro não ocupa posição central no Manifesto, o que só iria ocorrer anos mais tarde com Casa Grande & Senzala. Mas, de modo absolutamente inesperado, desloca-se o centro do Manifesto quando nele assistimos à exaltação da cozinha, meio caminho entre a sala de jantar e a senzala. Em vez de render homenagem exclusiva às insígnias de nobreza ou de propor inusitados recursos literários, Gilberto pratica-os, valorizando a cultura popular ou seus instrumentos de trabalho. E ao fazer a apologia desses valores, carrega ele no metonímico, no particular, no concreto, como se esse procedimento estilístico ajudasse a reforçar sua investigação e apreciação do miúdo.
Quando insiste na “significação social e cultural” dos “valores culinários do Nordeste”, Gilberto dessacraliza, ao mesmo tempo, a noção de “cultura” e de “manifesto”. Porque, na medida que rebaixa tais termos à domesticidade da cozinha e do fogão de lenha, o antropólogo pernambucano reinventa as palavras e delas subtrai qualquer traço de elaboração intelectualizada e, portanto, inapreensível. Ao materializar de modo tão concreto e tão prosaico aquilo que defende, Gilberto decepciona uma expectativa “high brow” que, de modo habitual, manifesta seu projeto estético em termos de distanciamento em relação ao populacho, do qual pretende, a todo custo, se diferenciar e se destacar, ainda que não o explicite, às vezes.
Na particularização a que desce, Gilberto se compraz em esmiuçar funções consideradas menos nobres que o exercício do intelecto. Dessa forma, ao esquadrinhar a diversificada culinária regional brasileira, sua inquietude renovadora não apregoa, como de costume, a erradicação de hábitos europeus consolidados, que funcionam como verniz superficial sobre nossa efusiva indigência mental e cultural, mas apregoa, sim, um mergulho no nosso próprio ethos. Em resumo, o que Gilberto propõe é que nos desvencilhemos de um passado europeizado recente que, eventualmente, nos descaracteriza. Sua proposta vai mais fundo, porque busca num passado mais distante os elementos coloniais que concorreram para constituir nossa então incipiente nacionalidade. Nostálgico do campo, seu comportamento metodológico leva-o para junto de muitos daqueles historiadores ingleses como Raymond Williams ou Keith Thomas, que nunca desprezaram e nem omitiram o envolvimento pessoal confesso na restauração intelectual do passado nacional. Para Gilberto aplica-se a mesma formulação de Raymond Williams, quando explica seu procedimento metodológico logo no começo da sua obra clássica: “O resultado é este livro; ainda que freqüente e necessariamente ele adote procedimentos impessoais de exposição e análise, há sempre, por trás de tudo, um ímpeto, um engajamento pessoal. E, como a relação entre campo e cidade é não apenas um problema objetivo e matéria de história como também, para milhões de pessoas hoje e no passado, uma vivência direta e intensa, não julgo necessário justificar esta causa pessoal, ainda que faça questão de mencioná-la”. (Williams, 1989, p. 13)
Ao contrário do que se espera normalmente de um manifesto, dirigido, de preferência, ao intelecto, área onde deverá provocar e estimular reflexões demoradas e graves, o de Gilberto mexe com o estômago e com as papilas. Seu destino é outro e faz do cérebro caixa de ressonância secundária. Seu processo, inequívoco, mas implícito, de desconstrução, assenta-se, portanto, em funções pedestres, os da digestão. E, ao mesmo tempo em que opera essa decepção voluntária, ele também desconstrói a frase feita quando reconhece que “não só do espírito vive o homem”, mas também do pão comum, do “pão de ló, do pão-doce, do bolo que ainda é pão”.7 Nesse momento, seu espírito zombeteiro e materialista puxa mais pra baixo ainda o intuito desidealizador da frase, alterando-lhe a seqüência e nela enfiando dados de realidade cotidiana. Assim, desmancha-se, de vez, a expectativa normalmente poética de um manifesto que não aponta para as alturas, mas para os baixos e, quando muito, para os lados. Nesse enquadramento, o Manifesto Regionalista é pantagruélico, rabelaisiano e carrega, portanto, na direção oposta à do sublime. Pouco promete, é nada utópico, não ilude. Foge daquela sociologia messiânica e salvacionista que se implantou em outros setores do país. Talvez porque Gilberto conhecesse bem o lugar em que vivia. 8
NOTAS
1. Ver transcrição desse artigo em Azevedo, 1984, p. 198-200.
2. Utilizei a 2ª edição fac-similada do Livro do Nordeste, publicada por iniciativa de Mauro Mota, através do Arquivo Público Estadual de Pernambuco, em 1979.
3. Poema publicado na revista América Brasileira (RJ), dez. 1923, nº 24. Ano II. Recolhido, mais tarde, no Mafuá do Malungo de 1948.
4. Os dois prefácios seqüestrados de Macunaíma foram publicados por Marta Rossetti Batista, Telê Porto Ancona Lopez e Yone Soares de Lima em Brasil: 1º tempo modernista - 1917/29. Documentação. São Paulo: IEB-USP, 1972, p. 289-295.
5. Utilizei a 6ª edição do Manifesto Regionalista, publicada pelo IJNPS do Recife em 1976, com introdução de Manuel Diègues Júnior. Para eventuais comparações, usei também a edição de 1955, publicada no Rio de Janeiro pelo Ministério da Educação e Cultura, na coleção “Os cadernos de cultura”.
6. Ver Marta R. Batista e outros – Brasil: 1º tempo modernista... p. 289-293. 7. G. Freyre, Manifesto Regionalista, p. 65.
7. G. Freyre, Manifesto Regionalista, p. 65.
8. Este artigo foi-me solicitado por Fátima Quintas, pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco de Recife, e saiu como prefácio à 7ª ed. do Manifesto Regionalista de Gilberto Freyre (Recife: Fundação J. Nabuco / Editora Massangana, 1996), publicada durante os festejos dos 70 anos do “Congresso Regionalista do Recife”, ocorridos em 1996. A Fátima Quintas e à Fundação Joaquim Nabuco, agradeço pela permissão de sua republicação.
REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Neroaldo Pontes de. Modernismo e Regionalismo (Os anos 20 em Pernambuco). João Pessoa: Secretaria de Educação e Cultura da Paraíba, 1984.
BATISTA, Marta Rossetti, LOPEZ, Telê Porto Ancona & LIMA, Yone Soares de. Brasil: 1º tempo modernista - 1917/29. Documentação. São Paulo: IEB-USP, 1972.
FREYRE, Gilberto et alii. Livro do Nordeste, 2ª edição fac-similada (por Mauro Mota). Recife, Arquivo Público Estadual de Pernambuco, 1979.
FREYRE, Gilberto. Manifesto Regionalista, Recife, Fundação Joaquim Nabuco / Editora Massangana, 1996.
INOJOSA, Joaquim. Sursum corda!. Rio de Janeiro: Olímpica Editora, 1981.
MARTINS, Wilson. Pontos de vista (Crítica literária) 1968/1969/1970. Vol. 8. São Paulo: T. A. Queiroz, 1994.
SCHWARTZ, Jorge. Vanguardas latino-americanas. Polêmicas, manifestos e textos críticos. Prefácio de Alfredo Bosi. São Paulo: EDUSP – Iluminuras - FAPESP, 1995.
SOUZA, Gilda de Mello e. O Mestre de Apipucos e o Turista Aprendiz. Luso-Brazilian Review, 32/2, Winter, 1995.
WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade. Trad. de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Antonio Dimas é Doutor e Livre Docente em Letras, Professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
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