Rebeldes de academia: contradição e coerência

Cid Seixas


RESUMO
Jorge Amado e a Academia dos Rebeldes, grupo de escritores baianos responsável pela formulação de um projeto de modernidade contrário ao modernismo de 1922. A Bahia, com os rebeldes, e Pernambuco, com Gilberto Freyre, deram ao movimento modernista uma feição mais voltada para os valores locais, tradições e costumes. Os rebeldes e sua academia: contradição e coerência.
Palavras chave: Jorge Amado; rebeldes; Gilberto Freyre; nordeste

SUMMARY
Jorge Amado and the Rebels Academy, a group of writers from Bahia responsible for the formulation of a project of modernity against the modernism of 1922. The states of Bahia, with the rebels, and Pernambuco, with Gilberto Freyre, gave the modernist movement a feature more directed to local values, traditions and customs. The rebels and his academy: contradiction and coherence
Keywords: Jorge Amado; rebels, Gilberto Freyre, Northeast




Quando, na Bahia, os jovens Rebeldes de 1928 se puseram em combate às estruturas conservadoras da sociedade, dirigindo farpas e flechas à Academia Brasileira, fundaram uma outra academia para combater a conivência acadêmica com as conveniências pessoais e as oligarquias do imutável.

A tempestiva reunião de intelectuais baianos ainda jovens e desconhecidos (do porte futuro de Jorge Amado, no romance, de Edson Carneiro, na etnografia, de Sosígenes Costa, na poesia, ou de Walter da Silveira, no cinema e no ensaio de crítica da cultura), esta bem temperada panelinha baiana foi marcada pela tempestuosidade de aparência inconseqüente e de conseqüências significativas.

Não tendo construído um grande acervo de produção durante os seus breves anos de existência e tumulto (de 1928 a 1933), a Academia dos Rebeldes já foi vista como um movimento apenas contestatório e demolidor. O próprio Jorge Amado, no tom despreocupado e bonachão que revestiu e abaianou seu discurso, após abandonar as barreiras do stalinismo e superar as limitações do Partido Comunista, foi responsável pela disseminação de uma idéia demasiadamente modesta a respeito do papel fomentador dos Rebeldes. Não obstante, nos últimos anos, o mesmo Jorge Amado ter legado à posteridade depoimentos decisivos sobre o papel diferencial do grupo com o qual se iniciou na literatura e na militância popular. (1)
A força inovadora destes jovens decorre, portanto, de um conjunto de fatos iluminados por uma proposta própria e sociologicamente determinada de modernidade literária, ou ainda por um fenômeno artístico que Nelly Novaes Coelho designou de olhar inaugural. (2)

Convém, portanto, não subestimar a importância desta vertente sociopolítica do modernismo na Bahia pelo fato da Academia dos Rebeldes ter constituído apenas um meteórico programa de passagem para os seus integrantes. A curta duração deste agrupamento intelectual deveu-se à explosão de interesses e projetos culturais múltiplos, que se realizariam em espaços diversificados. Inteiramente distanciada e independente do modernismo da revista Arco & flexa,
(3) a Academia dos Rebeldes procurava ignorar o modernismo de importação da Semana de Arte Moderna de São Paulo e suas ramificações e re-significações regionais. Enquanto a maior parte dos jovens modernistas de regiões ou nações periféricas se contentava em traduzir para a sua cultura as conquistas do admirável mundo novo, caracterizando assim os primeiros embates modernistas, alguns “refratários” e rebeldes procuravam a própria identidade da sua cultura. Identidade esta verificável no trânsito da tradição para a inovação pressuposta pelos mecanismos do processo social. As configurações regionais do modernismo (ver mais adiante os possíveis pontos identitários entre os rebeldes baianos, a “escola” pernambucana de Gilberto Freyre e a colidente modernidade de Monteiro Lobato) levaram à constituição de uma cultura artística ou de um modernismo de exportação. O regionalismo dos anos trinta decorre deste diferencial, assegurando ao então jovem Jorge Amado a possibilidade de inverter uma relação secular entre as literaturas do Brasil e de Portugal. Se até então Lisboa estava investida no papel de metrópole intelectual das relações bilaterais, Alves Redol vai buscar em Jorge Amado alguns pontos de sustentação da insciente proposta que resultou na eclosão do neo-realismo português.

Revisitar tal proposta de reconstrução da realidade brasileira — não esboçada completa e claramente no momento da sua constituição como grupo, mas inquietantemente detonada como caleidoscópio — é o propósito enunciado.

Comecemos pela tentativa de explicação do título deste trabalho: “Rebeldes de Academia: Contradicão e coerência”. A pergunta sugerida quer funcionar como provocação ou como resposta afirmativa contrária ao aparente enunciado oximórico.

Parte-se, não apenas, da hipotética importância do desconhecido papel da Academia dos Rebeldes para a moderna Literatura Brasileira, mas também da certeza que a rebeldia, guinada à condição de título do grupo, ultrapassa os arroubos juvenis e se inscreve como uma marca decisiva e constante dos seus participantes.

Desmontando, aos poucos, o sentido inicialmente sugerido e a ironia das formulações, compreende-se o porquê da criação de uma academia para combater a convivência acadêmica com o conservadorismo. Mas estes Rebeldes também se voltaram contra as formas de vã-guardismo que julgaram inconseqüentes e dissociadas da realidade cultural brasileira. Deste modo, admitiram a retomada das tradições que estivessem em consonância com as necessidades concretas do homens no seio da vida social. Aí, a forma de comprometimento ideológico destes Rebeldes define as fronteiras do seu processo criativo, abrindo sendas para as questões políticas e identitárias — que como tais ainda não eram denominadas.

Já se censurou os moços de 28 pela “incoerência” de terem criado uma academia para combater a Academia. Nada de contraditório, se aceitarmos que as academias, nas duas acepções — de instituições de transmissão do saber ou de confrarias de intelectuais — podem estar a serviço da construção do presente e da arquitetura do futuro ou, tão somente, podem significar a melancólica rememoração do passado.
Intitulada aquela de Academia dos Rebeldes, seus confrades queriam assinalar o caráter disfórico das academias instituídas e, ao mesmo tempo, recuperar a euforia acadêmica através de uma rebeldia quase adolescente. Opor a disposição dos jovens para mudar o mundo à apatia dos já estabelecidos diante do paradigma fóssil — eis a proposta dos jovens baianos de 28.

Se na idade madura, o homem repousa na confraria dos vencidos da vida, no início da juventude a academia é dos rebeldes. E porque rebeldes, estes acadêmicos ou antiacadêmicos baianos que ajudaram a construir o avançado patamar dos anos 30, antes mesmo de esboçarem uma proposta de ação, fizeram irromper, a seu modo, o trabalho de reconstrução da realidade brasileira.

Ilustre desconhecida, a Academia dos Rebeldes se inscreve neste lugar comum da linguagem. Cabe então retomar, um pouco, a sua história insuficientemente contada além dos velhos muros e derruídas portadas da Cidade da Bahia.

No volume de 1992, Navegação de cabotagem; apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, Jorge Amado diz em tom sério-jocoso: “A Academia dos Rebeldes foi fundada na Bahia em 1928 com o objetivo de varrer com toda a literatura do passado — raríssimos poetas e ficcionistas que se salvariam do expurgo — e iniciar a nova era.” (Amado, 1992, p. 84)

Seguindo um hábito boêmio da época, quando escritores e intelectuais se reuniam em torno de uma mesa de bar, jovens como Jorge Amado e Edson Carneiro, então com 16 anos, e outros mais velhos, a exemplo de Alves Ribeiro, Clóvis Amorim, João Cordeiro, Aydano do Couto Ferraz e Da Costa Andrade, também transformavam as infindáveis discussões etílicas em inflamadas tertúlias literárias. Sosígenes Costa, poeta da cidade de Belmonte residindo em Ilhéus, a capital dos coronéis do cacau, foi convidado por Jorge Amado a participar do grupo. Era mais um correspondente literário do que um freqüentador das rodas boêmias, tendo raríssimas vezes se deslocado a Salvador.

O mentor inicial do grupo foi o poeta e agitador cultural Pinheiro Viegas, corrosivo intelectual que também destilou seus feitos e seu fel entre os rapazes da revista Samba
(4) que, em 1928, formavam um outro grupo atuante na Bahia. (Seixas, 1996, p. 73-79)


Assim como Carlos Chiacchio foi o intelectual mais velho e já reconhecido que serviu de fiador dos rapazes de Arco & flexa perante a tradição baiana, Viegas se tornou patrono tanto da Academia dos Rebeldes quanto do grupo ligado à revista Samba. Jorge Amado se refere a ele como “panfletário temido, epigramista virulento, o oposto do convencional e do conservador, personagem de romance espanhol, espadachim”. E na mesma passagem do texto acrescenta a múltipla informação: “A antiacademia sobreviveu ao patrono e durou ainda um ano; o último a obter ingresso em suas hostes foi Walter da Silveira.” (Amado, 1992, p. 84)

Muito embora a militância comunista tenha funcionado, em diversos momentos da vida intelectual, como elemento redutor da autonomia da arte, o compromisso político de alguns Rebeldes constituiu um fator decisivo para os pontos de coesão entre estes criadores. A militância serviu de régua e compasso aos escritores que levantaram um projeto de modernidade — visceral e epidermicamente — afinado com a realidade do seu povo.

Quando era o último dos sobreviventes do grupo que formou a Antiacademia de 28, Jorge Amado procurou reconsiderar o papel desempenhado por aqueles bem humorados mosqueteiros, que combateram o bom combate dos fins dos anos vinte aos princípios dos anos trinta, fazendo um inventário sucinto do papel desempenhado não apenas nos tempos da juventude mas durante toda a vida de cada um dos Rebeldes. Amado chegou então a esta avaliação sentimental:

“Único vivo do grupo que compôs a Academia, no exercício da saudade, faço o balanço dos livros publicados pelos Rebeldes, por cada um de nós. A Obra Poética e Iararana, de Sosígenes Costa: sua poesia, nossa glória e nosso orgulho; a obra monumental de Édison Carneiro, pioneiro dos estudos sobre o negro e o folclore, etnólogo eminente, crítico literário, o grande Édison; os Sonetos do malquerer e Os Sonetos do Bem-querer, de Alves Ribeiro, jovem guru que traçou nossos caminhos; os dois livros de contos de Dias da Costa, Canção do Beco, Mirante dos Aflitos; os dois romances de Clóvis Amorim, O Alambique e Massapê; o romance de João Cordeiro devia chamar-se Boca suja, o editor Calvino Filho mudou-lhe o título para Corja; as coletâneas de poemas de Aydano do Couto Ferraz, a de sonetos de Da Costa Andrade; os volumes de Walter da Silveira sobre cinema — some-se com meus livros, tire-se os nove fora, o saldo, creio, é positivo.” (Amado, 1992, p. 85)

Fundamentando a sua avaliação, segundo a qual o grupo teria uma destacada importância, Jorge Amado mostrou como os Rebeldes concorreram “de forma decisiva” para o processo de formação da moderna literatura brasileira “para dar-lhe conteúdo nacional e social na reescrita da língua falada pelos brasileiros. Fomos além [...], sentíamo-nos brasileiros e baianos, vivíamos com o povo em intimidade, com ele construímos, jovens e libérrimos nas ruas pobres da Bahia.” (Idem, ibidem)

Aí, portanto, a marca da Academia dos Rebeldes: a aliciação, ou o engajamento com formas e fundos populares calcados no sentimento telúrico e no compromisso identitário para com os valores da cultura nacional, ou até mesmo localista; aí, a sua linha tangencial adversa à essência do modernismo de 22. Enquanto o olhar focado pelas lentes da Semana de Arte Moderna espiava a cultura do povo brasileiro sob o véu da diferença caricaturada pelo pitoresco e pelo exótico, fazendo desfilar um Brasil fantasiado para inglês ver, a perspectiva deflagrada pela práxis textual da Academia dos Rebeldes estava fundada na ação direta dos seus actantes. Para o escritor identificado com os princípios capitais dos Rebeldes, o compromisso identitário bania a superficialidade do pitoresco visto de fora, porque seu processo criador levava em conta a situação concreta que o cercava, enquanto sujeito ou actante da cultura.

É ainda Jorge Amado em entrevista-depoimento para o livro Literatura baiana — 1920-1980, organizado por Valdomiro Santana, quem afirma, propondo uma cisão colidente entre o modernismo na Bahia e em São Paulo:

“Nós, os Rebeldes, tínhamos um ponto de vista: queríamos uma literatura nacional, mas com um conteúdo capaz de universalizar. Tivemos a revista Meridiano, que só saiu um número e onde está o nosso manifesto. Quer dizer, vivemos o espírito do Modernismo — mas tínhamos uma certa desconfiança desse movimento, aquela coisa de paulista, de língua inventada. Os modernistas não conheciam a linguagem popular.” (Amado, 1986, p. 15)

Se a força de uma tradição social de raízes populares mantém uma ordem de artistas sujeita à renovação fundada na prática cultural, tais artistas estão atrelados à caminhada com os pés roçando o chão, por mais híspido e incerto que seja o caminho. Já outros artistas, pertencentes a uma esfera ideológica oposta, são tentados a abandonar as veredas e picadas tortuosas pela ampla estrada da primeira miragem contemplada. Estes últimos reluzem aos olhos como bijuterias vindas de Paris, marcadas pela novidade e pelo rótulo da vanguarda.

Daí a facilidade com que alguns modernistas do centro cultural do país aderiram, num primeiro momento, ao futurismo de Marinetti, enquanto o chamado modernismo periférico (de estados como a Bahia ou Pernambuco, citando-se apenas dois exemplos próximos) procurava conter o novo na prática corrente ou possível da geléia geral do lugar. Visto de relance, trata-se de um lance cauteloso ou mesmo conservador. Mas, visto com vagar, a impressão cede espaço a uma reflexão mais conseqüente.

O próprio Mário de Andrade, que ao longo da sua vida literária embebeu-se de Brasil, guardando a descoberta da nacionalidade na bagagem do turista aprendiz, começou cedendo ao fascínio pela novidade vinda de fora. Depois é que descobriu que o novo se faz com materiais reciclados.

Mais uma vez, quero aproximar a forma de construção de uma nova realidade nacional adotada por Jorge Amado e pelo grupo dos Rebeldes daquela realizada por Gilberto Freyre, em Pernambuco, ou, pioneiramente, por Monteiro Lobato, na solidão caipira de São Paulo. São propostas da modernidade que, por divergirem da gramática modernista, foram inicialmente acoimadas de anacrônicas.

E aqui insisto no caso Sosígenes Costa, cujo poema Iararana foi revelado aos leitores, por José Paulo Paes, já submetido ao estigma judicatório do anacronismo, pelo próprio organizador do volume. Apesar do esforço em fazer circular a vertente epidermicamente
(5) modernista do poeta grapiúna, esta obra nuclear e fundadora, surgida na saliência fecunda do modernismo brasileiro, foi vista com reserva pela crítica nacional. Cacau de Jorge Amado e Iararana, de Sosígenes Costa, são textos dos três primeiros anos da década de trinta que inauguram o ciclo do cacau, respectivamente, no romance e na poesia. O primeiro marcado pelo realismo socialista, o segundo desmedido experimento que flutua entre as propostas identitárias — comuns a Amado, Edson Carneiro, Sosígenes ou Walter da Silveira — e o desafio de aceitar as blagues e os blefes da poesia modernista de 22 ou de 28.

A originalidade do nativismo de Sosígenes Costa salta da invenção do Brasil empreendida, no século anterior, por Alencar, para se enveredar pelas roças de cacau do sul da Bahia. A partir de uma metonímia localista propondo mitos fundadores de uma cultura mestiça como figuração do nacional, Sosígenes ousa submeter a epopéia aos signos dessacralizadores da paródia. Indo além dos inventos pioneiros de Mário de Andrade, em Macunaíma, ou de Cassiano Ricardo, em Martim Cererê, o rebelde Sosígenes Costa é punido com a indiferença da crítica brasileira, pela rebeldia diferencial de Iararana.

Ao propor a aproximação entre os Rebeldes e Monteiro Lobato, prevejo o reconhecimento que aos poucos se impõe. Convém lembrar aqui Oswald de Andrade em Ponta de Lança, quando significativamente sublinhava: “Urupês é anterior a Pau Brasil e à obra de Gilberto Freyre.” Mais adiante, o são-joão-batista do modernismo dá a bóia por baixo, submetendo os pioneiros de 22 à avaliação do “passadista” Monteiro Lobato: “nós também trazíamos nas nossas canções, por debaixo do futurismo, a dolência e a revolta da terra brasileira.” (Andrade, 1971, p. 4)

Reconhecendo o papel manancial deste autor estigmatizado pelos modernistas de 22 e admirando a consistência das idéias do Jeca Tatu, Oswald diz que Lobato “oferecia um peito nu e atlético aos golpes mais profundos de que lançam mão a usura e o latrocínio.” Convinha aos saqueadores desse Furacão-da-Botocúndia matar o homem para saquear seus bens; àqueles a quem o autor de Ponta de Lança chamou de “grandes carnívoros que se alimentaram muitas vezes das suas idéias, das suas iniciativas e descobertas”. (Andrade, 1971, p. 5)

Voltando à antiacademia dos Rebeldes, é importante que se proponha, a partir da periferia, ou de espaços que ultrapassam os limites do centro, uma revisão do lugar, na literatura brasileira, de escritores e de movimentos que responderam às circunstâncias culturais das diversas regiões do Brasil.

Obras e movimentos, a exemplo dos Rebeldes baianos, que se inscreveram na modernidade brasileira independente ou divergentemente do Modernismo de 22, foram vistos, durante algum tempo, como conservadores e anacrônicos, sendo deslocados do lugar que de fato ocupam na história da nossa literatura.

O aparente ante-modernismo pode significar a marca da diferença; a recusa de uma região do país de abandonar a sua identidade longamente constituída. Estas formas refratárias, desobedientes, insubmissas (de Pernambuco ou da Bahia, por exemplo), podem ser vistas como uma forma de afirmação da modernidade nem melhor nem pior, apenas diferente da forma surgida com a Semana de Arte Moderna de São Paulo. Assim como o modernismo brasileiro traz uma marca diferencial com relação à modernidade vista através dos escritores europeus, o modernismo dos vários estados brasileiros também surgiu de condições culturais diversas daquelas do Rio de Janeiro, capital da República, ou de São Paulo, nova capital econômica do país. (SEIXAS, 2001, p. 82)

Adotar um padrão, uma gramática modernista, a partir da ótica da maior cidade industrial brasileira, serviu para balizamento didático de uma historiografia da literatura em processo de escrita, mas pode relegar ao esquecimento importantes manifestações literárias brasileiras, num país marcado pela diversidade de culturas.

Cidade mestiça, umbilicalmente ligada ao continente africano, Salvador conseguiu superar — ou por em suspenso — a sua ilusão de bastarda princesa européia nas obras de Jorge Amado, de Edison Carneiro ou de Walter da Silveira, por exemplo. Estes autores souberam ver as virtudes da diversidade: o papel do negro e da mestiçagem no processo de formação da nossa cultura. Daí o que veio depois, a flamejante conseqüência da ousadia destes Rebeldes que souberam desobedecer à norma gramatical modernista brasileira, construindo a modernidade não a partir das quinquilharias contrabandeadas da Europa mas da matéria bruta, prima, retirada da realidade regional. Jorge Amado como figura essencial do romance regionalista de 30. Edison Carneiro e os estudos etnográficos revolucionários com relação à contribuição do negro. Uma antropologia da mestiçagem, vista não mais do lado de fora, mas como imperativo visceral da utilização dos instrumentos da cultura européia pelos afro-descendentes. Walter da Silveira como pensador do cinema e formador de uma nova mentalidade cinematográfica no país. Todos sabemos que Glauber e grande parte do cinema novo saído da Bahia não seriam os mesmos sem a influência constelar de Walter da Silveira. Tudo isso que foi feito nos anos 30 e se reinventou, ao longo dos anos seguintes, nasceu daqueles rapazes que viam com desconfiança o jeito de corpo dos modernistas da grande cidade. No modernismo visto do quintal, dos terreiros, becos e ladeiras, outros bichos e outras gentes entram na história.

Rebeldes sem causa? Pois sim...



NOTAS

1 O volume Navegação de cabotagem; apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei, composto por anotações e pela recuperação de dados guardados na memória, é uma preciosa fonte não somente para o conhecimento do trajeto intelectual do romancista Jorge Amado, como da vida cultural brasileira e dos percalços políticos e sociais do século XX.

2 Ver Nelly Novaes Coelho: Sons e ritmos: elementos estruturais básicos, In —­: A literatura infantil, p. 154. Para melhor compreensão do substrato teórico que Nelly Novaes Coelho propõe como fundamento da atividade crítica, ver ainda o volume propedêutico Literatura e linguagem.

3 Arco & Flexa (flecha com x), mensário modernista baiano do final dos anos vinte que reuniu escritores como Carlos Chiacchio, Carvalho Filho, Hélio Simões, Pinto de Aguiar, Eurico Alves, Godofredo Filho, Eugênio Gomes, dentre outros. Além dos baianos, escritores de outros estados participaram da revista, a exemplo do gaúcho Raul Bopp, do “Clube de Antropofajia” (sic), de São Paulo, que compareceu com o poema inédito “Putirum”, depois incluído no livro Cobra Norato, de 1931. Sobre Arco & Flexa ver a edição fac-similar de 1978 e a monografia de Ívia Alves, constantes das referências bibliográficas, no final deste texto.

4 Samba, revista surgida na Bahia em novembro de 1928, reunindo jovens escritores hoje conhecidos como os “poetas da Baixinha”, designação difundida por Nonato Marques, pelo fato dos seus integrantes se reunirem num café da Baixa dos Sapateiros. Ao contrário de Arco & Flexa que era composta pela chamada elite social e intelectual de Salvador, o grupo da Baixinha incluía pessoas simples como o Guarda Civil 85 e o alfaiate Bráulio de Abreu, hoje reconhecido como o decano da poesia baiana. Em fevereiro de 1993 algumas comemorações marcaram os cem anos de vida do poeta. Sobre o Grupo da Baixinha, a revista Samba e algumas publicações baianas ver o livro de Nonato Marques A poesia era uma festa.

5 Sosígenes Costa só encontra lugar entre os historiadores da literatura brasileira como poeta simbolista, figurando no amplo painel daqueles que continuam fiéis às sutis formas de representação do século XIX nas primeiras décadas do século XX. Tendo em vista a produção simbolista de Sosígenes anteceder e proceder à sua desassistida vertente modernista, convém especular se o modernismo (mas não a modernidade) no poeta não seria algo de epidérmico.



REFERÊNCIAS

ALVES, Ívia. Arco & Flexa: Contribuição para o estudo do modernismo. Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1978, 156 p.

AMADO, Jorge. Academia dos Rebeldes. In Santana, Valdomiro (org.). Literatura baiana 1920-1980. Rio de Janeiro, Philobiblion, 1986.

AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem; apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. Rio de Janeiro, Record, 1992.

ANDRADE, Oswald de. Ponta de Lança. 2ª ed. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1971.

ARCO & FLEXA: edição fac-similar, revista literária de 1928/1929, Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1978. (n° 1, 66 p.; nº 2/3, 70 p.; nº 4/5, 90 p.

COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil. 4ª ed, São Paulo, Quiron, 1987, 199 p.

COELHO, Nelly Novaes. Literatura e linguagem. 3ª ed, São Paulo, Quiron, 1980, 389 p.

COSTA, Sosígenes. Iararana. Introdução, apuração de texto, estudo introdutório e glossário por José Paulo Paes; apresentação de Jorge Amado; ilustrações de Aldemir Martins. São Paulo, Cultrix, 1979.

COSTA, Sosígenes. Obra poética. 2ª ed., Organização , apresentação e notas de José Paulo Paes. São Paulo, Cultrix, 1978, 317 p.

MARQUES, Nonato. A poesia era uma festa. Ensaio-depoimento e antologia. Salvador, GraphCo, 1994, 140 p.

PAES, José Paulo. O modernismo visto do quintal. In COSTA, Sosígenes. Iararana. São Paulo, Cultrix, 1979, p. 3-19.

PAES, José Paulo. Pavão parlenda paraíso: uma tentativa de descrição crítica da poesia de Sosígenes Costa. São Paulo, Cultrix, 1977.

SEIXAS, Cid. Triste Bahia, oh! Quão dessemelhante. Notas sobre a literatura na Bahia. Salvador, EGBA / Secretaria da Cultura e Turismo, 1996. (Coleção As Letras da Bahia)

SEIXAS, Cid. Sosígenes Costa: Epopéia cabocla do modernismo na Bahia. In PÓLVORA, Hélio (org.). A Sosígenes, com afeto. Salvador, Edições Cidade da Bahia, 2001, p. 75-84.

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