Gilberto Freyre em Paraty


Helena Bocayuva

RESUMO
Presença virtual de Gilberto Freyre à 8ª FLIP, Festa Literária deParaty. Considerações do autor sobre as conferências voltadas para sua obra, incluindo a exposição do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que ainda compartilha a má vontade da intelectualidade brasileira dos anos 70 com o pensamento desse intérprete do Brasil.
Palavras-chave: Gilberto Freyre; antropologia; identidade do Brasil

ABSTRACT
Virtual presence of Gilberto Freyre to 8th FLIP, Literary Festival in Paraty. Considerations of the author about the lectures focused on his work, including the exposure of the sociologist Fernando Henrique Cardoso who still shares the unwillingness of Brazilian intellectuals of the 70s towards the thought of this interpreter of Brazil.
Keywords: Gilberto Freyre; anthropology; identity of Brazil


Paraty, aqui estou novamente, quase oitenta anos depois da primeira visita… Desta vez escapei das agruras infringidas aos aventureiros que seguem os conselhos de Paulo Prado (1869-1943) e embarcam no famigerado vapor Irati. (Freyre, G. LXXV, Prefácio à primeira edição de Casa-Grande & Senzala, Rio de Janeiro, Record, 1998).

À época, eu quis me aproximar até geograficamente daquele passado que se estuda “tocando em nervos”.

Paraty foi o segundo porto mais importante do país, nos séculos XVII e XVIII – quando uma trilha ligava Minas, São Paulo e Rio de Janeiro – e aqui desembocava para embarcar ouro, açúcar e aguardente rumo a Portugal. Depois, caiu no esquecimento até os anos 70 do século passado, com a construção da Estrada Rio-Santos.

Igrejas centenárias, sobrados e fazendas, “caminho do ouro”, tudo parecia estar parado no tempo quando aqui pisei pela primeira vez, anos 30 do século passado.

Hoje são meus todos esses aplausos. A 8ª FLIP – Festa Literária de Paraty – homenageia minha obra. Por minha causa veio gente de todas as partes, falar e ouvir. A conferência de abertura “Casa-Grande & Senzala: um livro perene” foi proferida por um ex- Presidente da República, o sociólogo da Universidade do Estado de São Paulo-USP chamado Fernando Henrique Cardoso. O mediador é o titular da cadeira de História do Brasil na Sorbonne, o historiador Luiz Felipe Alencastro. A palestra foi aplaudida de pé, embora não tenha me agradado. Meu velho amigo Edson Nery da Fonseca, na platéia, também parecia insatisfeito com as críticas que eu recebia!

FHC é muito fluente, ótimo orador, mas como se sabe entre a USP e o meu pensamento sempre correram rios de distância. Dizem até que me recusei a fazer parte da banca dele de doutourado e agora ele me daria sua resposta. Outros ainda dizem que sendo vaidoso como eu, meu brilho lhe causaria inveja.

Não deixou de louvar o método que inventei. A riqueza de fontes que utilizei no meu trabalho foi tida como inovadora: anúncios de jornais, cartas, e os documentos da Inquisição. Foram justamente os documentos da Inquisição que forneceram a fresta mais fecunda para a observação da “vida íntima” da sociedade colonial, com destaque para o território da sexualidade, categoria com a qual FHC não trabalha. FHC reconheceu também meu imenso conhecimento dos principais antropólogos do meu tempo, como meu mestre Boas (1858-1942) e Herskovitz (1895-1963).

Não pude deixar de perceber que tudo que poderia ser considerado um comentário positivo era dito em tom condescendente.

O Professor-ex-Presidente gastou muito tempo e saliva avançando na discussão mais bizantina possível: minha escrita seria científica ou literária? Contrapõe ensaio e ciência, sempre constatando que não concluo meus parágrafos! Enumero oposições sem entretanto chegar à uma síntese – eu fujo da dialética, disse FHC, se bem entendi. Ora, ao aprender meu ofício, aprendi a relativizar, palavra chave para a antropologia!

Saudades das análises de um Antonio Cândido, pioneiro na construção de caminhos para o entendimento da minha obra, que classificava como pertinente ora ao campo da literatura, ora ao campo da ciência:

“…sua sociologia, sendo rigoroso estudo é também visão: a este título a expressão literária se crava no seu cerne, tornando-se um recurso de elucidação e pesquisa” (Cândido, 1962: 120 citado por Bocayuva, 2000).

Assim, meu livro dito perene, Casa-Grande & Senzala estaria distante dos cânones acadêmicos preconizados pela USP, no tempo que o ex-Presidente proferia suas aulas, sempre de guarda-pó branco, como fazem aqueles que trabalhavam em laboratórios.

Cabe também notar que o sociólogo FHC se declarou um não especialista na minha obra. Mencionou que foi a partir do prefácio que escreveu para a edição de 2003 de Casa-Grande que surgem convites para falar sobre mim, Gilberto Freyre.

Na manhã do dia 7 a mesa 1, “Ao correr da pena”, reúne Moacyr Scliar, Ricardo Benzaquém e o crítico literário Edson Nery da Fonseca, com mediação de Angél Gurria Quintana.

Moacyr Scliar retomou a discussão bizantina sobre o antagonismo entre ciência e narrativa literária. Chegou a fazer uma associação entre o uso de números e a ciência.

Leu também um famoso parágrafo sempre citado quando se quer apontar o anti-semitismo em Casa-Grande (Freyre: 226, 1998). No parágrafo em questão há uma quase atribuição de especialização biológica aos judeus, as mãos transformadas em garras decorrentes da prática intensiva de contar dinheiro. Os críticos mais generosos argumentam o embalo da retórica, já que em outras páginas as contribuições positivas dos judeus ganham primazia. Deve-se também mencionar que, como outros textos de autores da época, há oscilação entre os pressupostos da cultura e os biológicos – no trecho mencionado há um escorregão no biológico.

Edson Nery da Fonseca declamou o poema “Bahia de todos os santos e todos os pecados”, emocionando a platéia.

“Bahia
Um dia voltarei com vagar ao teu seio brasileiro
Ao teu quente seio brasileiro
As tuas Igrejas cheirando incenso
Aos teus tabuleiros escancarados em X
(esse X é o futuro do Brasil)
e cheirando a mingau e a angu”.
(Freire, in Magalhães Jr.: 1957, p. 365)

A proposta da mesa 7, que contou com mediação da historiadora Lilia Schwarcz, era discutir outras obras minhas menos conhecidas. Nordeste é o tema de Alberto Costa e Silva, a historiadora Maria Lúcia Pallares –Burke ficou com Os Ingleses no Brasil e Angela Alonso se dedicou a Ordem e Progresso. Alberto Costa e Silva destacou a atualidade das análises de Nordeste, um dos meus livros favoritos, se me permitem a confissão, Maria Lúcia Pallares-Burkes ressaltou a profusão de fontes, inclusive anúncios de jornais, utilizadas em Ingleses no Brasil e Angela Alonso se referiu ao fato da pesquisa que desenvolvi em Ordem e Progresso, um imenso survey , seguir metodologia contemporânea… ora vejam só.

Faço 110 anos esse ano, cansei… vou voltar ao sono eterno deixando a edição do artigo com a pesquisadora Helena Bocayuva, que passa a se responsabilizar pelo presente.


REFERÊNCIAS

BOCAYUVA, Helena (2001). Erotismo à Brasileira. O excesso sexual na obra de Gilberto Freyre. Rio de Janeiro: Garamond.

FREYRE, Gilberto (1948). Os Ingleses no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio.

FREYRE, Gilberto (1959). Ordem e Progresso: processo de desintegração das sociedades patriarcal e semipatriarcal no Brasil sob o regime do trabalho livre: aspectos de um quase meio século de transição do trabalho escravo para o trabalho livre e da monarquia para a república. Rio de Janeiro: Record, 1990.

FREYRE, Gilberto (1939). Açúcar – uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1997.

FREYRE, Gilberto (1933). Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 1998.

FREYRE, Gilberto (1974). Tempo Morto e Outros Tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade – 1915-1930. São Paulo: Global; Recife: Fundação Gilberto Freyre, 2006.

MAGALHÃES JR, Raimundo (Org.) Antologia de Humorismo e Sátira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1957.

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Helena Bocayuva é doutora em saúde coletiva pelo IMS/UERJ e pesquisadora do grupo EPOS (IMS/UERJ).

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