Do Lazarillo de Tormes a Macunaíma (notas sobre a picardia e a malandragem)

Amarino Oliveira de Queiroz

RESUMO
Estudo comparado do Lazarillo de Tormes, obra anônima espanhola do século XVI, com o Macunaíma, de Mário de Andrade, a partir de considerações sobre a natureza malandra e picaresca dos personagens. O problema da autoria do Lazarillo e os estudos sobre o tema. O anti-herói e o malandro. O picaresco: da literatura espanhola à literatura brasileira.
Palavras-chave: Lazarillo de Tormes; Mário de Andrade; o pícaro e o malandro


ABSTRACT
The present essay compares the Lazarillo de Tormes, anonymous Spanish work of the 16th century with Macunaíma by Mário de Andrade, considering the picaresque or rascal nature of the characters. The essay also brings the following issues: the authorship of the Lazarillo and the studies on the theme; the anti- hero and the rascal and also the Picaresque: from the Spanish Literature to the Brazilian Literature.
Key-words: Lazarillo de Tormes; Mário de Andrade; the picaresque and the rascal.


O LAZARILLO DE TORMES,
PRIMEIRO ROMANCE MODERNO?

Em seu estudo sobre a Vida del Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades, o crítico espanhol Fernando Lázaro Carreter (1999) credita a este romance o caráter de obra inaugural da narrativa picaresca em língua espanhola, reiterando a afirmação de muitos estudiosos que o situam como marco inicial do romance moderno. Tal afirmativa se sustentaria no fato de que, até o aparecimento do Lazarillo, o relato apresentava a figura do herói adulto, um príncipe, um cavaleiro, um refinado senhor consagrado à atividade pastoril etc, com caracteres previamente fixados desde o início, sem que as peripécias e aventuras por ele vividas pudessem operar transformações substanciais em sua trajetória individual.

A partir da obra em questão, a vida do personagem principal é apresentada em constante desenvolvimento, desenrolando-se ao longo de todo o processo narrativo. E é nessa situação de una vida haciéndose que surge o Lazarillo, caracterizando, segundo Carreter, pela primeira vez na história literária, um protagonista pobre e miserável. A sucessão dos acontecimentos por ele vivenciados entre um capítulo e outro é o que nos dá a chave para o entendimento de sua vida, o porquê de sua queda em desonra e o que nos antecipa, também, uma característica presente no romance moderno.


A APARIÇÃO DO LAZARILLO

Em 1554 foram publicadas, sem identificação de autor, quatro edições do romance nas cidades espanholas de Burgos, Alcalá, Amberes e Medina del Campo. Acredita-se, contudo, que uma outra versão, da qual não se conserva notícia, tenha sido lançada anteriormente. Apesar do enorme sucesso obtido naquele país, principalmente pelo seu caráter iconoclástico, de denúncia das hipocrisias e outras mazelas sociais, o Lazarillo de Tormes foi incluído, em 1559, no Índice eclesiástico de livros proibidos.

O fato, entretanto, não impediu de todo a sua propagação, uma vez que exatamente por este motivo começariam a chegar à Espanha diversas outras edições impressas no exterior, assim como várias traduções vieram à luz desde os primeiros anos, datando de 1876 a primeira edição em língua portuguesa, realizada por A. de Faria Barreiros. Em 1573, foi autorizada a publicação de uma nova versão, devidamente expurgada, com a supressão de várias alusões irreverentes e de dois tratados inteiros, dos sete em que a obra está dividida, mais um prólogo. Sua liberação completa se daria somente a partir de 1834.

Em 1992, numa iniciativa da Conselhería de Educação da Embaixada da Espanha no Brasil, foi lançada nacionalmente uma edição bilíngüe, fiel ao texto original em espanhol, com tradução do professor Pedro Câncio da Silva. Em prefácio a essa edição, o professor Mario González (p.11-26) tece alguns comentários sobre o que considera enigmas para os leitores de hoje e que julga interessante relacionar, como, por exemplo, as questões da autoria, do gênero e do anti-heroísmo.

Atribuída inicialmente a Diego Hurtado de Mendoza (1503-1580), pelo menos sete outros nomes figuram como sendo o do autor do romance, dentre os quais se destaca o de Sebastián de Horozco (1510-1580). Mais modernamente parece prevalecer uma aceitação do caráter anônimo do texto do Lazarillo, alavancada pelo fato de que, para a verossimilhança da obra, não faria sentido que outro nome assumisse a função de “autor”, e se é o próprio Lazarillo quem nos conta as fortunas y desventuras levadas a cabo durante sua trajetória. Por outro lado, convém salientar que o mesmo caráter anônimo da obra protegeu o seu verdadeiro autor de retaliações decorrentes das denúncias empreendidas contra o clero e sobre a corrupção social de seu tempo.

O sentido inovador desta obra em termos de modalidade narrativa é o que parece ser verdadeiramente relevante para a história da literatura, no entender de González, uma vez que “o texto anônimo abre caminho para o romance”. Mesmo adotando elementos formais característicos das autobiografias confessionais, o texto do Lazarillo supera o modelo da carta e, ao inscrever-se na ficção, estabelece um terceiro gênero: o romance. A narrativa documental é acrescida de um sentido de paródia dos livros de cavalaria, eliminando o narrador onisciente e substituindo-o pelo narrador-protagonista. Este deixa de ser o herói-modelar para dar lugar ao anti-herói, numa paródia daquele. Cria o leitor moderno, “decodificador de textos cuja estrutura fechada envolve sentidos abertos”, adota propositadamente o “grosseiro estilo” e estabelece o realismo nessa nova ficção, onde o texto é a expressão “do homem existindo no que acontece”.

O Lazarillo se apresenta anti-heróico, “à luz dos heróis modelares” presentes nos romances de cavalaria. Ao contrário destes, que se esmeram num extremado e nem sempre verossímil exercício de virtudes que se projetam “para além de si” e colocam em risco a própria existência, o Lázaro de Tormes aparece como a negação desse heroísmo, “não apenas porque carece de todas as suas virtudes”, mas também porque todos os seus feitos traduzem uma constante legislação em causa própria, opondo-se a um valor fundamental da sociedade de seu tempo: a honra pessoal. Essa derrubada dos mitos da heroicidade se verifica, conforme reitera Mario González, justamente “na denúncia do vazio em que se apóia a sociedade que cultua esse mito”.


O LAZARILLO E O ROMANCE PICARESCO

Pícaro, em seu sentido mais amplo, adjetivaria todo tipo de desocupado ou subempregado que, por uma questão de sobrevivência, fazendo um indiscriminado uso de criatividade, astúcia e malícia, ultrapassaria em suas artimanhas o limiar da delinqüência. Sem ofício conhecido nem consciência moral, entre suas atividades entrariam as de mendigar e roubar, ainda que pudesse também ele encontrar-se na situação de vítima de seus próprios ardis. A narrativa picaresca seria, portanto, um relato da malandragem, uma quase antecipação daquele nosso macunaímico “herói sem caráter” cuja trajetória vem na contra-mão de valores pré-estabelecidos. As picardías do Lazarillo de Tormes seriam, entretanto, na opinião do crítico espanhol Lázaro Carreter, de pouca monta, se comparadas às façanhas dos pícaros posteriores, ainda que acabassem por fundar o modelo de personagem ao qual se ajustará o subgênero picaresco.

Quase cinqüenta anos mais tarde, o escritor sevilhano Mateo Alemán publicaria a Vida del pícaro Guzmán de Alfarache, consolidando o picaresco enquanto gênero e induzindo outros escritores à produção de obras com as seguintes características, já dentro do século XVII:
  • o autobiografismo, em que o protagonista narra a sua própria vida, o que lhe possibilita discorrer sobre sua visão pessoal do mundo, amarga e crítica;
  • é filho de “pais sem honra”, o que declara cinicamente;
  • vê-se obrigado a abandonar seu lar, devido à pobreza;
  • em boa parte de sua vida, serve a diversos amos;
  • é induzido ao roubo pela fome e, às vezes, pelo vício;
  • usa de artimanhas engenhosas para roubar;
  • aspira a ascender socialmente, mas não consegue sair de seu estado miserável;
  • sorte e desgraça se alternam em sua vida;
  • costuma contrair casamento sem honra;
  • não narra acontecimentos fantásticos etc.


O ESTILO DA OBRA

O Lazarillo expressa o ideal de “simplicidade expressiva” verificada em muitos escritores renascentistas. Tanto no aspecto narrativo quanto no descritivo não apresenta artifícios: o que a ele preocupa é a exatidão da linguagem adaptada à pobre matéria que trata, pois, como bem reforça Erater, “não poderia ser de outro modo, já que o autor empresta a sua pena a um inculto pregão, que jamais foi à escola: para que a ficção fosse perfeita, era preciso que o Lazarillo de Tormes escrevesse num estilo natural e sem primores”. São escassos os diálogos, embora prevaleça no texto um tom coloquial. Há uma sucessão espontânea das frases, como se não tivessem sido planejadas, e os parágrafos se alongam, observa Erater, “com incisos que a lembrança e a necessidade de ser claro vão ditando a Lázaro”.


PICARESCO ESPANHOL
E MALANDRO NACIONAL

O escritor Mário de Andrade, ao comentar em 1941 as Memórias de um Sargento de Milícias, situou a obra escrita por Manuel Antônio de Almeida como uma espécie de “continuador atrasado” do romance marginal, a exemplo de Apuleio e Petrônio, na Antigüidade, ou do Lazarillo de Tormes no Renascimento, todos protagonizados por personagens anti-heróicos. Ainda que a história seja contada na terceira pessoa por um narrador que não se revela, prática diferente da desenvolvida no romance picaresco, no livro de Almeida se revelam, através do personagem Leonardo Filho, algumas semelhanças com o narrador pícaro: a origem humilde e irregular, a amabilidade, o riso fácil e a espontaneidade no comportamento, embora não aprenda exatamente com a experiência. Para Mário de Andrade, nessas Memórias de um Sargento de Milícias “não há um realismo em sentido moderno”, mas “algo mais vasto e intemporal, característico da comicidade popularesca”, onde Leonardo Filho não seria propriamente um pícaro como os da tradição espanhola, porém uma espécie de malandro inaugural do romance brasileiro, vindo de uma tradição quase que folclórica. E, nesse sentido, anteciparia aquela figura que o próprio Mário elevou à categoria de símbolo em Macunaíma.

Heloísa Costa Milton (1986), em estudo comparativo que se debruça sobre o romance picaresco e o personagem de Mário de Andrade, ressalta que “Macunaíma e o pícaro espanhol se tocam” na medida em que Macunaíma reúne o pícaro clássico e o malandro brasileiro, revelando-nos “uma realização nacional do pícaro tradicional” e sinalizando, dessa forma, para uma nova possibilidade de leitura do herói sem nenhum caráter. As “máscaras-camuflagens” do pícaro narrador, associadas a uma “consciência abandonada e trocada” presente tanto em Macunaíma como em Guzmán de Alfarache, servem, portanto, segundo ela, para “consumar a denúncia social”.
Em entrevista ao crítico Mário Hélio (2001), o poeta pernambucano Marcus Accioly retoma a questão do anti-heroísmo no contexto latino-americano, afirmando que os anti-heróis, que são os seus personagens, encontram verdadeiro habitat na América Latina, representados por figuras como as de Cuauhtémoc, Zumbi, Zapata, Tiradentes, Frei Caneca ou Lampião:

"Não temos heróis, possuímos anti-heróis, heróis pelo avesso. Não se trata do herói brechtiano, mas do herói decaído e destroçado. O nosso herói está sempre na oposição, do outro lado, na outra margem. Na América Latina, o anti-herói luta contra o “herói” instituído. É o oposto dos Estados Unidos que, diante da guerra perdida no Vietnã tem inventado uma verdadeira mitologia de heróis cinematográficos, que continuam indo à Ásia e voltando, através da tela, para resgatar o que só pode ser resgatado pela ficção" (...).
"Na América Latina, não há heróis sobreviventes, mas anti-heróis exterminados. Existem dois provérbios nordestinos que exemplificam o caso dos anti-heróis: “Não ficou ninguém para semente” e “Não ficou ninguém para contar história”. Assim é queimada a semente e apagada a história." (p. 28)


“MALANDRAGEM, DÁ UM TEMPO...”?

Retomando a perspectiva de Mário de Andrade, pode-se dizer que o seu malandro pratica, à maneira dos pícaros, a astúcia pela astúcia, atualizando a picaresca clássica e referenciando a erudição e o artesanato. A partir dessas bases, a crítica a um caráter nacional de se querer “levar vantagem em tudo”, por um lado, e, por outro, o elogio à astúcia e à criatividade como desafio e resposta aos infortúnios da existência, faz-se registrar em diversos momentos da literatura e mesmo da vida brasileira, desde os personagens do cordel nordestino, de onde saiu, por exemplo, um João Grilo, assimilado do imaginário do Cordel por Ariano Suassuna, até os folhetins eletrônicos da nossa teledramaturgia. Permanece, portanto, e também através da ficção, esse verdadeiro exercício dialético da malandragem que, para além do simples discurso literário, parece querer traduzir a metáfora de um anti-heroísmo nacional como atitude. Afinal de contas, como bem cantaria o ex-pintor de parede, ex-morador de rua, professor, músico, intérprete do cotidiano brasileiro e poeta pernambucano Bezerra da Silva, malandro é malandro e mané é mané.


REFERÊNCIAS BILBLIOGRÁFICAS

ACCIOLY, Marcus (2001). “Força e fôlego”. Entrevista a Mário Hélio in Continente Multicultural 04. Recife: CEPE, abril, p. 26-36.

ANDRADE, Mário de (1941). “Introdução” in Memórias de um sargento de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Biblioteca I. São Paulo: Martins Fontes, pp. 5-19.

LÁZARO CARRETER, Fernando (1999). Lengua castellana y literatura. Madrid: Anaya.

LÁZARO CARRETER, Fernando (1972). Lazarillo de Tormes en la picaresca. Barcelona, Ariel.

GONZÁLEZ, Mario (1992). Prefacio. Lazarillo de Tormes. São Paulo: Página Aberta; Brasília: Conselheria de Educação da Embaixada da Espanha.

MILTON, Heloísa Costa (1986). A picaresca espanhola e Macunaíma de Mário de Andrade. São Paulo: USP. Dissertação de Mestrado.

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Amarino Oliveira de Queiroz é Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural e Professor da UFRN.

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O exercício do olhar: Uma experiência de mão dupla

Valeria Lessa Mota

RESUMO
Análise do poema "Marinha", de Ruy Espinheira Filho, levando em conta a experiência do olhar e remetendo ao poema-cartaz como recorrência intersemiótica. O poeta aciona a metonímia para dar conta da sua experiência: ele está inteiro nos olhos que testemunham a paisagem, fazendo também parte dela. Dotado da potência encantatória das ondinas, da mobilidade do tempo, como no ciclo das marés, não apenas vê, também é visto e faz ver. Há um movimento que é de aproximação e distanciamento.
Palavras-chave: Poesia contemporânea; Ruy Espinheira Filho; Literatura na Bahia

ABSTRACT
This essay presents an analysis of the poem "Marinha", by Ruy Espinheira Filho, regarding the looking experience and directing to the poster-poem as an intersemiotic recurrence. The poet makes use of metonymy to enclose his experience: he is fully seen by the eyes that witness the landscape, and is also a part of it. Endowed with the enchanting power of the ondinas and with the mobility of time, as in the tidal cycle, he not only sees, but is seen and makes others see, establishing a movement of approaching and distancing.
Key – words: Contemporary poetry, Ruy Espinheira Filho; Literature in Bahia

“A vida urbana moderna é acompanhada de uma intensificação desmedida da nossa vida sensorial (…). Mas tal fenômeno também esconde, como foi ressaltado com freqüência, um empobrecimento qualitativo da nossa experiência”. (1) Dito de outro modo, os intensos e múltiplos apelos aos nossos sentidos não são acompanhados de experiências significativas. Há, ao contrário, um processo crescente de automatização, como afirma Carlo Ginzburg, em ensaio sobre o estranhamento. Nesse texto, o historiador italiano considera o procedimento literário como “um antídoto eficaz contra um risco a que todos nós estamos expostos: o de banalizar a realidade (inclusive nós mesmos)”. (2).

Excesso de apelos aos sentidos e pobreza de experiência podem ser vistos diariamente na TV ou em filmes, basta lembrarmos a transmissão televisiva dos atentados às torres do World Trade Center em Nova York, no dia 11 de setembro de 2001, e a recente intimidade glamourizada do programa Casa dos Artistas nas versões de 2001 e 2002, para exemplificar o bombardeio, principalmente, de imagens a que estamos potencialmente expostos com a conseqüente banalização e espetacula-rização da vida. Tais condições impõem a busca de experiências que atinjam a complexidade humana, memória, sonhos e valores, por exemplo, e não apenas uma atitude de mero espectador, facilmente transformado em objeto de manipulação comercial e ideológica.

Walter Benjamin, em dois textos anteriores à chamada Segunda Guerra Mundial, discute essas possibilidades de relação do indivíduo com o mundo. Em “Experiência” (1913) e “Experiência e pobreza” (1933), o crítico alemão conceitua experiência (Eufahrung) como um conhecimento significativo, isto é, articulado com a realidade em que foi produzido e que se reverte em benefício do ser humano – vem da realidade e para ela se dirige. É uma “experiência comunicável”, (3) que implica a questão de autoridade. Essa experiência é distinta da que ele chama vivência (Erlebnis), que é fruto de um viver desvinculado do espírito e articulada com “o vulgar”, com aquilo que é “eternamente-ontem”. (4)

A desautomatização da experiência pode ser proporcionada pelo modo como o real chega até nós, seja através de filmes, poemas e TV, quando se apresenta de uma perspectiva diferente que nos convida ou obriga a um maior empenho corporal. E é evidente que nós também precisamos estar dispostos a tal experiência, senão podemos trocar de canal, não ler o livro, não assistir ao filme.

A leitura do poema “Marinha”, de Ruy Espinheira Filho, favorece a experimentação dessa percepção, pois acredito haver, nele, um olhar peculiar sobre a realidade que possibilita também outras perspectivas, próprias do “lirismo elegíaco” do poeta baiano, como o denomina Ivan Junqueira. (5). Nessa poesia, o passado surge como “ponto de fuga, como alvo ficcionalizado”, porém, é, “antes de tudo uma falácia, uma artimanha do tempo”, (6) como afirma Iacyr Anderson Freitas, e, acrescente-se, do jogo poético, instaurado por Ruy Espinheira Filho.

Este poeta não se afasta do presente, no qual está imerso, mas revive o passado para confrontá-lo com o presente. Essa revisitação “ao mundo da morte e dos mortos” não é feita “para (…) encontrar a emoção primeira, senão a emoção cristalizada no tempo, na memória, e nos estados de alma do poeta”; (7); para encontrar a permanência, diante do tempo que sentimos passar em ritmo desabalado. A emoção cristalizada torna-se prisma, ou seja, manifestação e revelação poética do que falta e do que se anseia ou talvez do que se tenha em excesso e, ainda assim insuficiente, porque pouco significativo: experiências que se traduzam em conhecimentos e valores que ajudem a dar sentido à vida humana.

No poema “Marinha”, originalmente publicado em Heléboro (1974), primeiro livro de Ruy Espinheira Filho, reunindo textos escritos entre 1966 a 1973, o poeta se depara com os canhões que fazem parte da paisagem do Quartel da Marinha, em Amaralina, bairro e praia de Salvador. Sigamos o poeta:

MARINHA

"Meus olhos testemunham
a invisibilidade das ondinas,
a lenta morte dos arrecifes
e os canhões de Amaralina.

Vou, a passo gnominado,
pisando a areia finada praia.
Pombas sobrevoam
os canhões de Amaralina.

Parece a vida estar completa
na paz que o azul ensina.
A brisa ilude a vigilância
dos canhões de Amaralina.

Nem a tua ausência, amor, perturba
esta alegria matutina
onde só há o claro e o suave...
(E os canhões de Amaralina?)

Tudo está certo: mar, coqueiros,
aquela nuvem pequenina...
Mas – o que querem na paisagem
os canhões de Amaralina?" (8)

O poeta aciona a metonímia para dar conta da sua experiência: ele está inteiro nos olhos que testemunham a paisagem, fazendo também parte dela. Dotado da potência encantatória das ondinas, da mobilidade do tempo, como no ciclo das marés, não apenas vê, também é visto e faz ver. Há um movimento que é de aproximação e distanciamento.

O poeta marca a paisagem, moldando-a a sua natureza gnominada. Insere o seu ponto de vista: que é o do passado, da “busca de repouso, de segurança, de regeneração”, conforme o simbolismo da areia que ele pisa. A paisagem, feita à sua imagem e semelhança, lentamente se constitui, talvez pequena, como é o poeta frente ao mar, porém dotada de força e movimento que iluminam: carreiam e demandam sentidos.

O poeta enforma a paisagem, fazendo-a explodir em demandas de significação, porque nele há algo da natureza dos gnomos. A faculdade de iluminar e revelar o que está oculto nas coisas pela força da imaginação, da intuição, do sonho; (9) de tornar visíveis as forças e movimentos presentes nos elementos da paisagem: o caráter vigilante dos canhões e os sentidos que nele pulsam invisíveis aos olhos “cegos de tanto ver”. Contudo, o poeta também oculta na linguagem metafórica, no ritmo, na auto-referencialidade, as coisas, o mundo e a si mesmo, exigindo esforço de quem lê, para também incorporá-los.

O caráter diferente dos gnomos, figurados na imaginação popular como anões disformes, também é assumido pelo poeta. O olhar estranho, testemunhal, que vê, faz ver e participa do que é visto, destaca a paz e completude da paisagem e da vida como aparência. O poeta, assumindo sua condição gnômica, cria também o desconforto.

Ele não é apenas o poeta que faz ecoar outros versos: “Eu canto porque o instante existe/ e a minha vida está completa./ Não sou alegre, nem sou triste:/ sou poeta”10 , mas aquele que canta exatamente por causa da incompletude, do desconforme da vida ou para pôr em causa a aparência de completude e de conformidade, que ele, poeta moderno, sabe ser ilusória.

A capacidade de iluminar, absorvida dos gnomos, soma-se à de transitar por mundos considerados mutuamente excludentes, como o da fantasia e da realidade, da razão e da emoção, da memória e do presente, instalam-se também na paisagem construída. Nela, inicialmente, a presença vigilante dos canhões é sub-reptícia, mínima, no ritmo decrescente de cada verso que faz referência a eles.

Depois, o tom adquire altitude pela entonação interrogativa, mas ainda confrangido pelos parênteses, no último verso da quarta estrofe; até que explode, nos dois últimos versos: “Mas – o que querem na paisagem / os canhões de Amaralina?”. Esse procedimento de ampliação, ao tempo que faz entrar em movimento as forças de sentido, implica a reflexividade do olhar, do poeta e dos canhões, estes, portadores de uma das faculdades do ver: ou seja, vigiar. Essa troca de olhares implica troca de forças e, no poema, cria “atmosferas para melhor lançar e captar forças”. (11)

O trânsito do poeta detecta, de início, uma aura de pacificação sobre os canhões sobrevoados pelas pombas. Mas, com sua perspectiva diferenciada, com sua capacidade de ver a multiplicidade de tempos, de transitar entre o passado e o mundo presente, entre universos e tempos diversos, torna os canhões vivos, personificados, vigilantes. Eles preenchem-se de um invisível de significados a se construir. Mas tanto o poeta quanto os canhões transgridem a ordem nesse processo. Os canhões, porque personificados, ganham caráter humano e histórico. Eles tornam-se incômodos vigias da história ou olhos por onde a história penetra. E o poeta, por testemunhar, transita entre presente e passado, fantasia e realidade.

O poder emanado dos canhões faz frente às forças que o olhar do poeta demanda. Pode-se dizer que a deles é uma força potencialmente de morte, destruição, escuridão, associada à realidade opressiva. Vistos por olhos inocentes, são marcos históricos desprovidos de caráter bélico e, por isso mesmo, às vezes, ignorados. Apenas um sinal da ocupação e defesa do território baiano/brasileiro.

Contudo, o olhar crítico, mnemônico e inquieto faz vir a lume seu caráter de instrumento do poder que os primeiros senhores da praia de Amaralina exerciam e que outros, contemporâneos do poeta, exercem. Podem, desse modo, assumir a violência oficial do estado de exceção política, imposto pelo regime militar que submeteu o país de 1964 a 1984. Os canhões incorporam esse poder, personificando-o ao exercer a vigilância. Assim, eles pulsam de significados.

Para Rubens Alves Pereira, “a presença dos canhões parece estar subjugada pelo tempo. Instrumentos de luta e de morte, os canhões agora são mais ou menos que testemunhas históricas, que resíduos de um tempo passado; são também estranhos e familiares, forças ativas na paisagem, presenças eqüidistantes entre passado e presente, entre materialidade concreta e percepção ou enunciação fantas­magórica”. (12)

O confronto final entre o olhar, o saber, os sentidos do poeta e os olhos vigilantes dos canhões impregnam o testemunhar, no poema, de todo um campo semântico relacionado a crime, transgressão de ordem, julgamentos e réus. A expressão do conflito incorpora ou cria uma tensão sobretudo dramática, advinda da relação de forças entre o poeta e os canhões projetada de volta no sujeito e na realidade. A explosão iminente, contida na forma poemática, faz-se busca de novos sentidos; de outros olhares que saibam e queiram ver no conhecido, o desconhecido, no familiar, o estranho; que queiram ver o que está oculto nas coisas e na realidade; que queiram ver e questionar a realidade; que queiram falar e negam-se a calar, como o poeta não se calou diante das vigilâncias, perseguições e atentados humanos da ditadura militar brasileira.

O fato é que o poema “Marinha” ao perguntar “Mas – o que querem na paisagem/ os canhões de Amaralina”, faz-se transitivo, abre-se a retomadas que reinauguram o estranhamento. Uma delas é o poema homônimo de Aleilton Fonseca, uma paráfrase estililizada do poema de Ruy Espinheira Filho. Uma homenagem de outro tempo, tempo que faz “a ferrugem/ dos canhões de Amaralina”. (13) O poema de Aleilton Fonseca inscreve na paisagem literária novas marcas sobre “os rastros dos versos na areia”. Ao tempo que atualiza a questão aberta que fez os passos do poema primeiro: “Mas – o que querem na paisagem/ os canhões de Amaralina?”, Aleilton Fonseca, com o seu “Marinha”, responde-lhe:

"tudo está certo: mar, coqueiros,
como o poeta nos ensina:
mais ainda sobram na paisagem
os canhões de Amaralina" (14)

O poema reinstala na paisagem a estranheza dos canhões de Amaralina, embora eles sejam parte da paisagem e neguem a informada quietude, instaurando um novo momento poético. Aleilton Fonseca não foi o único a dialogar com “Marinha”, de Ruy Espinheira Filho. Valter Queiroz agregou-lhe uma música, para o CD Grão. (15) E há a ilustração de Paulo Setúbal para o poema-cartaz de 1981, sobre o qual cabem aqui alguns comentários, em um exercício na contramão da imagem pictórica.

A tensão, no poema, é paulatina, intensificando-se e atingindo o leitor ao final da leitura. No poema-cartaz, doravante denominado de pôster, a tensão é imediata, assim como o seu impacto. O cano de cor preta, que está em primeiro plano e vem de fora do enquadramento, praticamente violenta a borda direita, provocando tensão. Esta amplia-se com a ausência do corpo da arma e com a possibilidade de avanço em direção às palavras do poema, colocando-os potencialmente em choque. Esse confronto permite a troca de olhares e a reciprocidade encontradas no poema.

Se no poema o diálogo visual entre poeta e canhões instaura a desarmonia e a intranqüilidade na paisagem, o mesmo ocorre no pôster, onde os versos são elementos estranhos em uma paisagem visual, em um quadro. A natureza dos canhões também cria o desconforto.

O canhão, figurado metonimicamente na sua forma bem delineada e marcante do cano, parece trazer à tranqüilidade e harmonia da paisagem e do poeta nos versos a violência e a dureza externa, da realidade, em que poema e o quadro foram produzidos. O cano evoca o corpo fora do enquadramento, fora da paisagem figurada, evoca a ditadura com suas vigilâncias, perseguições, ameaças e agressão.

A faixa branca do cano dá-lhe uma semelhança com as pombas que sobrevoam os canhões. Une a concretude do cano à forma mais impressiva, abstrata e sugestiva das pombas. Esse caráter também remete ao movimento e, conseqüentemente, à multiplicidade de tempos que os canhões incorporam, no poema, através do olhar subjetivo e mnemônico do poeta. No pôster, o cano participa do movimento e da multiplicidade de tempos e de espaços: o dentro e o fora do quadro, o dentro e o fora da história.

A forma nebulosa do canhão duplicado em sombra na areia parece remeter à vigilância encoberta, sutil do poema. A disformidade macula, desestrutura a figuração nítida dos outros elementos, excetuando-se as nuvens e os pássaros, com os quais compartilha a mobilidade. O canhão assombroso, desse modo, impregna-se também do movimento da história e da memória. Talvez sejam portadores da paz como a “Pomba tonta, bomba atômica”, (16) de Vinícius de Moraes...

O poema-cartaz possui um caráter intersemiótico: é ao mesmo tempo um texto novo e uma ilustração do poema “Marinha” de Ruy Espinheira Filho, tendo exercido sua função comunicativa, assim como o texto que o inspirou. Depois deles e desse exercício de olhar em mão dupla, talvez os canhões de Amaralina sejam vistos com outros olhos, não menos mediatizados, porém de outra perspectiva, distante da adotada no turismo de consumo.

NOTAS

1 Carlo GINZBURG. Olhos de madeira; Nove reflexões sobre a distância. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. Estranhamento; pré-história de um procedimento literário, p. 38.

2 Carlo GUINZBURG, op. cit. p. 41.

3 Walter BENJAMIN. Documentos de cultura, documentos de Barbárie, escritos escolhidos. São Paulo: Cultrix / EDUSP, 1986. Experiência e pobreza. p. 195.

4 Walter BENJAMIN. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo: Summus, 1984. Experiência, p. 24.

5 Ivan JUNQUEIRA. O fio de Dédalo; ensaios. Rio de Janeiro: Record, 1998. O lirismo elegíaco de Ruy Espinheira Filho, p. 72-89.

6 Iacyr Anderson FREITAS. As perdas luminosas; uma análise da poesia de Ruy Espinheira Filho. Salvador: EDUFBA, FCJA, 2001. p. 20.

7 Hélio PÓLVORA. Poeta de epifanias. In: ESPINHEIRA FILHO, Ruy. Livro de sonetos. 2ª ed. Salvador: Edições Cidade da Bahia; Capitania dos Peixes, 2000. p. 88. Este texto foi originalmente publicado, no suplemento A Tarde Cultural, de 13/abril/1996.

8 Ruy ESPINHEIRA FILHO. Poesia reunida e inéditos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. p. 17.

9 Jean CHEVALIER e Alain GHEERBRANT. Dicionário de símbolos. 13ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. p. 472-473.

10 Cecília MEIRELES. Melhores poemas. 12ª ed. São Paulo: Global, 2000. 196 p. Motivo, p. 11.

11 José GIL A imagem-Nua e as Pequenas Percepções – Estética e Metafenomenologia. Trad. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 1996. p. 50-51.

12 Anotação do professor Rubens Alves PEREIRA, no trabalho final do curso “Literatura e Outros Sistemas Culturais”. Feira de Santana: Curso de Mestrado em Literatura e Diversidade Cultural da Universidade Estadual de Feira de Santana, 2001.

13 Aleilton FONSECA. “Marinha”. In: Assis BRASIL (org.). A poesia baiana no séc. XX: (Antologia). Rio de Janeiro: Imago; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1999. p. 264.

14 Aleilton FONSECA, op. cit. p. 26415 Grão; 12 poemas musicados. Salvador: COPENE, s.d. (1 CD).16 Vinícius de MORAES. Antologia poética. 25ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1984. A bomba atômica, p. 148.


Valeria Lessa Mota é Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da UEFS e Professora de Teoria da Literatura da UESB.

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Viagem lírica por uma terra devastada

Flávia Aninger Rocha

(Pintura de Juraci Dórea)

RESUMO

Este artigo propõe-se a analisar um dos clássicos poemas da modernidade, “The Waste Land” de Thomas Stearns Eliot, que fornece vasto material para uma análise do objeto poético produzido por uma percepção do mundo moderno. O poema apresenta uma possível legibilidade, ainda que negativa, para este mundo caótico. Nele, a profusão de imagens corresponde a inúmeros questionamentos, através dos quais vários lugares literários são revisitados, e diversas referências da cultura ocidental são ressignificadas.
Palavras-Chave: literatura moderna, imagens, lugares literários

ABSTRACT
This article has as its aim to analyze one of the classical poems of the modernity, “The Waste Land”, by Thomas Stearns Eliot, which provides vast material for an analysis of the poetical object produced by a perception of the modern world. The poem presents a possible, though negative legibility for this chaotic world. In it, the profusion of images corresponds to innumerous questionings, through which several literary places are revisited and various culture references are resignified.
Key- words: Modern literature; images; literary places.

Poema clássico da modernidade, “The Waste Land” de Thomas Stearns Eliot fornece vasto material para uma análise do objeto poético produzido por uma percepção do mundo moderno. Construído a partir de uma série de imagens superpostas, visíveis e invisíveis ao leitor, o poema parece pedir um exercício de compreensão de sua performance textual.

No dizer de Frye, as imagens de “The Waste Land” se assemelham a uma “justaposição de coisas ecléticas, que lembra Babilônia” (1) , o que nos oferece uma meta-imagem, em que a terra desolada do poema é o espaço de Babilônia, mas aos pedaços. Como na opulenta cidade, as imagens em referência ad infinitum provocam perplexidade, alertando os sentidos do leitor para o deciframento dos “flashes”, que se apresentam encaixados em uma intertextualidade subjacente, mas isolados entre si por lacunas na estrutura do poema.

Esta forma , como indicado por Rosenfield, em seu artigo “Waste Land ou Babel: A Gramática do Caos” (2) , mostra que a confusão de “lugares literários”, ou quadros do poema, está disposta em um formato intencionalmente caótico, compondo, assim, a temática e o conteúdo. Desta forma, a grande quantidade de elipses, que poderia passar por um processo aleatório ou sem encadeamento, é na verdade, um princípio de composição.

Forma e conteúdo apontam para uma percepção da modernidade expressa através de uma performance textual que, pelo processo da “interioridade da compreensão”, no dizer de Zumthor (3) , pode vir a ser reconstituída em suas partes e apontar os sentidos do poema.

Inicialmente, é preciso atentar para o que diz Zumthor acerca dos elementos constitutivos da literatura: “há um grupo de produtores de textos, fabricando objetos que se poderia qualificar de poéticos ou literários.” (4) Ou seja, os poemas são objetos para a percepção do leitor, que pode ainda tentar reconstituir, em sua leitura, a percepção do autor na criação do poema. Afirma Zumthor:

"Todo texto poético é, neste sentido, performativo, na medida em que aí ouvimos, e não de maneira metafórica, aquilo que ele nos diz. Percebemos a materialidade, o peso das palavras, sua estrutura acústica e as reações que elas provocam em nossos centros nervosos. Esta percepção, ela está lá. Não se acrescenta, ela está. É a partir daí, graças a ela que, esclarecido ou instilado por qualquer reflexo semântico do texto, aproprio-me dele, interpretando-o, ao meu modo; é a partir dela que, este texto, eu o reconstruo como o meu lugar de um dia. E, se nenhuma percepção me impele, se não se forma em mim o desejo dessa reconstrução, é porque o texto não é poético." (5)

O texto eliotiano se insere, no entanto, numa época em que a experiência do artista, e portanto também a performance textual, encontram-se sob condições especiais. Para citar outra área das artes, o pintor Paul Klee credita à época moderna “uma preocupação em objetivar o subjetivo, tornar audíveis ou perceptíveis as inaudíveis conversas mentais, deter o fluxo, irracionalizar o racional, desfamiliarizar e desumanizar o esperado... ver o espaço como uma função do tempo, a massa como uma forma de energia e a incerteza como a única coisa certa.” (6)

A modernidade vive um relativismo intenso, a experiência do mundo se desdobra e se fragmenta na multiplicidade. Cabe à arte, num “estado de suspensão”, como diz Bradbury, a tentativa de captar ou sintetizar em suas imagens, verbais ou não, o momento da transição, do caos, da descriação moderna.

Vale notar que o modernismo anglo-americano vivido por Eliot tinha como um de seus axiomas a definição “imagista” da Imagem, assim concebida por Ezra Pound: “Uma imagem é o que apresenta um complexo intelectual e emocional num instante de tempo.” (7) Ora, para José Gil, “antes da consciência perceptiva, há as variações da imagem” (8) , sendo que será através destas imagens, trazidas de uma massa primitiva, ou de um caos original, que o artista recriará o mundo pela sua experiência. Já dizia Frye, em seu livro a respeito de Eliot: “O poeta tem um potencial de formação de imagens e chega-se à sua filosofia ou corpo de idéias, estudando as implicações conceituais da estrutura de suas imagens.” (9)

Por isso, podemos dizer que o caminho para a percepção passa obrigatoriamente pela reconstituição da performance do texto, mencionada por Zumthor, ou, melhor dizendo, pela construção de sentidos que o olhar traz ao objeto.

Sabemos que o elo entre palavras e coisas, tal como era conhecido tradicionalmente, dissolve-se no novo ambiente múltiplo. Inaugura-se, nas palavras do próprio Eliot, a tarefa de criar novas totalidades. Na construção destas, observa-se a inserção do pensamento oriental, desde sempre envolvido com a junção dos opostos, com as metamorfoses, estabelecendo como verdade absoluta a experiência, como se observa pela tendência de alguns autores e pela quantidade de citações do “Upanishad” no próprio “The Waste Land”, entre outras. Neste propósito, a idéia da imagem, composta do mesmo espírito de fusão e dissolução que o modernismo, racional e emocional ao mesmo tempo, é o veículo perfeito do objeto poético. Portanto, a forma da arte moderna precisa se submeter ao seu conteúdo. Se a essência é plural, conter a arte seria desvirtuá-la.

Nascida de uma cultura em crise, a arte moderna reconhece que apenas a pluralidade de experiências a define. Isto conduz a uma exaustão dos sentidos ou hiperestesia, como Eliot habilmente demonstra, reunindo uma sincronicidade de experiências, que unem antigüidade e modernidade, o individual e o coletivo, o real e o irreal. Octavio Paz, em seu capítulo acerca da imagem, em “Signos em Rotação”, afirma:

"quando percebemos um objeto qualquer, este se nos apresenta como uma pluralidade de qualidades, sensações e significados. Esta pluralidade se unifica, instantaneamente, no momento da percepção. O elemento unificador de todo este quadro de qualidades e formas é o sentido... Mesmo no caso da mais simples, casual e distraída percepção dá-se uma certa intencionalidade, segundo demonstraram as análises fenomenológicas. Assim, o sentido não só é o fundamento da linguagem, como também de toda a apreensão da realidade. Nossa experiência da ambigüidade e da pluralidade parece que se redime no sentido. À semelhança da percepção ordinária, a imagem poética reproduz a pluralidade da realidade e, ao mesmo tempo, outorga-lhe sentido.” (10)

O deslize fluido das imagens em “The Waste Land” sugere o fluxo da inconsciência. Entre “memória e desejo”, como nas primeiras linhas, ou entre o visto e o imaginado, Eliot sugere um estado de percepção do mundo em que a experiência já se banalizou e a super-exposição à sinestesia moderna adormeceu a sensibilidade. Por isso a superfície do poema é opaca, esfacelada, incompreensível. O conteúdo tradicional no texto ou no intertexto, para Rosenfield, “sofre um desgaste imagético”, que produz a sensação de perda, ou de ruína do espaço estético. Os quadros do poema demonstram um uso aparente desta referência literária tradicional, também oferecida aos pedaços ao leitor, que reconhece, aqui e ali, uma figura literária ou histórica. Desta forma, há uma crítica ao pequeno-burguês que, pela familiaridade e pelo hábito, anula o valor do patrimônio cultural, que passa a objeto de consumo, como no trecho abaixo:

"Você está vivo ou não está? E na cabeça, não tem nada?
MasO O O O aquele rasgo Shakesperiano
É tão elegante
Tão inteligente" (WL)

Outros trechos, que deveriam conter pontos positivos, revelam-se como coisas irrecuperáveis. O corpo de Lil, a esposa, consumido pelos partos e abortos, a datilógrafa seduzida e devorada sem ressentimentos, entre outras imagens, mostram a desolação na dimensão dos sentimentos. Não há, como em Baudelaire, um sentimento de recusa diante das perdas impostas pela modernização urbana. Pelo contrário, não há drama. Repete-se o tom de “A Canção de Amor de J. Alfred Prufrock”, poema que mostra um sentimento de amor tornado impotente em todos os sentidos. Os sentimentos decorrentes da constatação da esterilidade amorosa não são de frustração. Eles passam ao âmbito do convencional, sem surpresas ou colorido. Daí a dedução de alguns críticos, que lêem a terra desolada como o mundo da convencionalidade e da sensibilidade banalizada.

A perda, na percepção de Eliot, se faz representar, outras vezes, nos emblemas da morte e da aniquilação. Assim, a terra é morta, com seus lilases estendendo raízes secas e nutrindo bulbos murchos. A lama das ruas sugere podridão e lixo, na neve enegrecida pelos que passam. O diálogo entre os homens, quase morto, traz o enunciado cru da morte:

"Estou mal dos nervos esta noite. Fique comigo.Fale comigo! Porque você nunca fala?(...)Eu nunca sei o que você está pensando. Pense.Penso que estamos no beco dos ratosOnde os mortos perderam seus ossos" (WL)

No último verso pode-se notar que a perda é total. Não há mais carne e os ossos se perderam, foram consumidos. As imagens de perda e as próprias elipses sugerem uma cultura que se auto-destrói, uma modernidade que se devora como os ratos devoram restos de carne, e que se corrompe, esvaziando-se. No poema, as imagens da fragmentação chegam ao extremo, indicando uma sociedade em decomposição, onde os velhos arquétipos são agora “uma pilha de imagens quebradas” (WL).

Em “The Waste Land” não é o olhar do poeta que capta o mundo. A vida é captada por outros olhares e outras vozes. A visão é confusa. No mesmo poema, outros visionários da devastação na terra: Isaías e Ezequiel. Tirésias, no entanto, parece-se mais com Zarathustra, abatido diante de um mundo devastado, do que com os profetas bíblicos ou o próprio adivinho de Tebas. (11)

A vidência de Tirésias, homem e mulher, fornece uma síntese daquilo que pode ver o habitante do mundo moderno, e sua visão das imagens da realidade, como o contexto pós-guerra converte o companheiro da I Guerra Mundial em antigo combatente das guerras púnicas, vendo-o como possuidor de um nome que o despersonaliza, pois “Stetson”, é uma marca de chapéus. O companheiro é mais um na multidão de chapéus que passa na Ponte de Londres, evocando a passagem de Dante em que uma multidão de mortos vivos suspira de tal forma, que o ar treme pela sua condição de indignos do céu e do inferno.

"E eu não pensara que a morte desfizera tantos.Suspiros, breves e infreqüentes, se soltavam,E cada qual fixava os olhos frente aos pés.(...) ali eu vi alguém que eu conhecia, parei- o e gritei: ”Stetson!”Tu que estavas comigo nas naves de Mylae!" (WL)

O olhar de Madame Sosotris, desdobramento feminino de Tirésias e vidente moderna que utiliza as cartas do Tarot para enxergar os destinos humanos, também vê a multidão “em um círculo” e passa imediatamente ao seu comércio de horóscopos, pois a visão da multidão sem rumo já não a afeta. Aliás, em todo o poema, tudo que é visível ou presumivelmente real, apresenta um significado “invisível”, ou seja, apresenta um aspecto que expõe a profundidade da imagem, mas o despertamento ou a estranheza que poderia causar já faz parte da coleção de sentimentos banalizados. A sensibilidade não é estimulada. Assim, a racionalidade do comércio, a avareza e a avidez são percebidas pela visão, sem, no entanto, causar maiores sensações ao personagem que internamente interpreta o poema. De fato, em todo o poema, há uma exposição do aspecto invisível da imagem, revelando ao leitor atento a outra face de imagens que parecem simplórias ou incompreensíveis.

Para Eliot, o cotidiano é a máscara maior. Assim, reveste-se de importância a referência ao quadro na parede de uma sala qualquer que apresenta a “mutação de Filomela”, cena das “Metamorfoses” de Ovídio, referência literária constante no poema. E é somente através de uma visão para dentro do quadro que é possível entender o restante do trecho, onde se vê exposta a realidade das mulheres que são violentadas, como Filomela, e que de modo semelhante, têm a língua cortada e ficam impossibilitadas para sempre de manifestar sua dor e sua revolta. Filomela, transmudada em rouxinol, e cantando com “voz inviolável”, ainda é um quadro na parede, não é real. A realidade do horror subsiste no cotidiano, esconde-se nele e perdura.

Segundo Calvino (12) , a poesia das “Metamorfoses” se caracteriza exatamente por se radicar nesses limites imprecisos entre mundos diferentes, como Eliot quer que vejamos o mundo moderno: entre a vidência das imagens invisíveis e a visão das imagens reais. Ovídio também utilizava a sobreposição de imagens rápidas, como no princípio cinematográfico moderno, assim como Dante em sua “Divina Comédia”, também referência constante, apresenta um grande número de estímulos visuais em cada cena.

Contudo, uma imagem não deve ser esquecida. A da Sibyla, profetisa e conselheira cuja história mítica serve de epígrafe ao poema. É a ela que se refere Eliot ao dizer: “Eu te mostrarei o medo num punhado de pó”. A ela foram garantidos tantos anos de vida quantos fossem os grãos de areia que pudesse segurar em sua mão, mas ela se esqueceu de pedir para continuar jovem e sua imagem decadente fez com que não fosse mais respeitada em sua autoridade de vidente.

Da mesma forma, o mundo moderno, cuja vida é garantida pelo progresso e pela racionalidade da ciência, continua a decair. Sua vitória é seu fracasso, suas conquistas são a razão de suas perdas reais. Para Eliot, o mundo pós guerra aguarda apenas a confirmação de sua morte. A Sibyla é condenada a olhar apenas para si mesma, esperando uma morte que parece nunca chegar.

A tentativa de enxergar em meio à “bruma escura” (13) ainda aparece no trecho em que o poeta procura identificar a estranha planta que nasce no lixo de pedra e uma voz anuncia a desilusão e a desistência: “só o que podes ver é uma pilha de imagens quebradas” (14) , ligando mais uma vez o poema à visão confusa ou imperfeita de um mundo em transição.
Nas últimas linhas do poema, como que para reforçar as imagens soltas, únicas coisas que podemos ver na nossa modernidade míope, há três referências. Duas em italiano e a última em francês, sendo que todas remetem ao final solitário de algum trecho de Ovídio ou Dante, aparentemente sem nexo entre si. A primeira aponta para o fogo que purifica os pecadores, a segunda, para a esperança de ser liberto da condição humana e ser transformado em andorinha, e a terceira, cortando estas duas possibilidades ou visões do futuro, aponta para um príncipe em sua torre arruinada, emblema da cidade moderna, viúvo e inconsolável, a quem só resta esperar a morte. E termina elucidando: “Escorei estes fragmentos em minhas ruínas” (15) o que nos deixa com a grande constatação da natureza de seu poema, forçando-nos a ir além do que se pode ver na próxima citação, parte da peça de Thomas Kyd, onde Hieronymo, um velho escritor contratado pelo rei para escrever uma peça de teatro para entreter a corte, aproveita para contar a história da morte de seu filho e como ator, usa a cena da morte de um personagem, para, no meio da performance, fazer justiça e matar o assassino de seu filho.

A literatura moderna se propõe como um operador de leitura de seu tempo. “The Waste Land” propõe-se a dar legibilidade, ainda que negativa, ao mundo moderno. Nele, as imagens são nossos próprios questionamentos, vários lugares literários são revisitados, e diversas referências da cultura ocidental são re-significadas. Eliot nos deixa pensar que a literatura precisa ter uma performance tão viva quanto a de Hieronymo, atingindo seu tempo e sua cultura como a faca saída da ficção. O personagem de Kyd se torna personagem de Eliot, que nos faz a todos personagens de seu mundo devastado.Este encontro da ficção com o real nos conduz novamente às referências intermináveis, sugerindo que o que podemos ver não é senão algo já visto, dè- jà-vus, síntese de passado e presente que precisa de um logos que nos recrie, trazendo, segundo uma compreensão do próprio Eliot, a shantih, paz que prescinde do entendimento.

"Why then Ile fit you. Hieronymo’s mad againe.Datta. Dayadhvam. Damyata. Shantih shantih shantih."


NOTAS

1 Northrop Frye. T. S. Eliot: An Introduction. Chicago, The University of Chicago Press, 1986. (Tradução nossa).

2 Kathrin Rosenfield. Poesia em Tempo de Prosa. Trad. Lawrence Flores Pereira. São Paulo, Iluminuras, 1996, p. 73.

3 Paul Zumthor. Performance, Recepção, Leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo, EDUC, 2000, p.83.

4 Idem, p. 55.

5 Idem, p. 63-64.

6 Paul Klee, citado por Malcom Bradbury e James Mc Farlane. O nome e a natureza do Modernismo. In: Modernismo: Guia Geral. Trad. Denise Bottman. São Paulo, Companhia das Letras, 1989, p. 36.

7 Ezra Pound, citado por Malcom Bradbury e James Mc Farlane. Op. cit.

8 José Gil. A Imagem Nua e as Pequenas Percepções: Estética e Metafenomenologia. Trad. de Miguel Serras Pereira. Lisboa, Relógio D’Água, 1996, p. 23.

9 Northrop Frye. T.S Eliot : An Introduction. Chicago, The University of Chicago Press, 1986, p. 48, tradução nossa.

10 Octavio Paz. Signos em Rotação. São Paulo, Perspectiva, 1976, p. 46.

11 Kathrin Rosenfield. Poesia em Tempo de Prosa. Trad. Lawrence Flores Pereira. São Paulo, Iluminuras, 1996, p. 87.

12 Italo Calvino. Por que ler os Clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p.32.

13 No original “brown fog”, que Lawrence Flores traduz por “fulva fumaça”. Fulvo significa alourado ou amarelo, o que não condiz com a intenção do autor de conotar o ambiente escurecido pela “fog” de Londres.

14 Escolhi a palavra “quebradas” em vez da palavra “rotas” , escolhida pelo tradutor. No original temos “a pile of broken images”, termo bastante evidente e relacionado à temática da fragmentação e da quebra. A palavra “rotas” se refere a “rasgado ou esfarrapado”, conforme registra o Dicionário Aurélio.

15 A tradução de Lawrence Flores inverte a imagem de Eliot: “These fragments I have shored against my ruins” acaba traduzido por “Nestes fragmentos escorei minhas ruínas”, sendo que é exatamente o contrário. São as minhas ruínas particulares que recebem os fragmentos, compondo a “pilha de imagens quebradas” do início e fechando o ciclo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BENJAMIN, Walter. A Modernidade e os Modernos. Trad. Heidrun Krieger Mendes da Silva. Rio de Janeiro, Edições Tempo Brasileiro, 1975.

BRADBURY, Malcom e James Mc Farlane. Modernismo: Guia Geral. Trad. Denise Bottman. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

BRADLEY, Sculley, et al. The American Tradition in Literature. Vol 2, New York, Norton & Company, 1962.CALVINO, Italo. Por que ler os Clássicos. Trad. Nilson Moulin. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.

ELIOT, Thomas Stearns. Notes Towards the Definition of Culture. Londres, Faber and Faber, 1991.FRYE, Northrop. T. S. Eliot: An Introduction. Chicago, The University of Chicago Press, 1986.

GIL, José. A Imagem Nua e as Pequenas Percepções: Estética e Metafenomenologia, Trad. de Miguel Serras Pereira. Lisboa, Relógio D’Água, 1996.

PAZ, Octavio. Signos em Rotação. São Paulo, Perspectiva, 1976.ROSENFIELD, Kathrin H. Poesia em Tempo de Prosa. Trad. Lawrence Flores Pereira. São Paulo, Iluminuras, 1996.

ZUMTHOR, Paul. Performance, Recepção, Leitura. Trad. Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo, EDUC, 2000.

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Flávia Aninger Rocha é Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural da UEFS. Lecionou na UFBA, como professora substituta, onde obterve seu Doutorado, e, atualmente, é Professora da Universidade Estadual da Bahia, UNEB.

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Modernismo e tradicionismo na Bahia

Cid Seixas

O cais do porto da Bahia, antes das demolições que visavam
a chamada "modernização" da cidade.

RESUMO
Hélio Simões, além de ter exercido o papel de figura central nas relações culturais luso-brasileiras na Bahia, participou do núcleo criador da revista Arco & Flexa, uma das publicações baianas responsáveis pela introdução da arte moderna no Brasil. O fato de estados com a Bahia e Pernambuco, de relevante passado colonial, terem desempenhado importantes papéis na construção da identidade brasileira, acentuou o processo de defesa das tradições nacionais contra a importação de modelos estrangeiros. Tal resistência ainda é confundida com impermeabilidade à estética da modernidade. A paradoxal conexão modernismo e tradicionismo dinâmico: Carlos Chiachhio e a adesão à proposta do poeta catalão Gabriel Alomar fundindo tradição e modernidade.
Palavras-chave: Modernidade; Literatura na Bahia; Hélio Simões

(Trabalho apresentado ao XXII Congresso Internacional da Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa, realizado na Universidade Federal da Bahia, de 13 a 18 de setembro de 2009.)

ABSTRACT
Hélio Simões, beyond his central role in Luso-Brazilian relations in Bahia, participated of the creation group of the Arco & Flexa magazine, one of the publications made in Bahia responsible for the introduction of modern art in Brazil. Since states like Bahia and Pernambuco, of important colonial past, have played an important role in the construction of Brazilian identity, this fact accentuated the process of defense of national traditions against the importation of foreign models. Such resistance is still mistakenly seen as impermeability to the esthetics of modernity. The essay also brings the paradoxal connection between modernism and dynamic traditionism: Carlos Chiachhio and the adhesion to the proposal of the Catalan poet Gabriel Alomar, conjugating tradition and modernity.
Key-words: Modernity; Literature in Bahia; Hélio Simões


Agradeço à organização do XXII Congresso de Literatura Portuguesa o convite para integrar esta mesa plenária sobre a Memória do Ensino e da Pesquisa da Literatura Portuguesa no Brasil. Para minha surpresa e honrosa alegria, aqui estão presentes, como conferencistas, dois grandes mestres da atualidade que dão forma e relevo à memória mais viva dos estudos portugueses no Brasil: a professora Cleonice Berardinelli e o professor Massaud Moisés.

Peço licença a ambos para iniciar a apresentação do tema que me foi proposto e que pode ser resumido no título “Hélio Simões: do poeta modernista ao fomentador das relações luso-brasileiras”. Os dois mestres aqui presentes conheceram muito de perto o homenageado neste texto. Os três viveram os momentos de fundação dos estudos portugueses em nosso país.

Permitam-me então repetir, professora Cleonice, professor Massaud, coisas que ambos conhecem há muito tempo.

A vida acadêmica de Hélio Simões ganha definição em 1932, quando aos 22 anos, é diplomado pela Faculdade de Medicina da Bahia, a mesma escola de um outro seu colega e companheiro de geração, que também trocou a medicina pela literatura, Afrânio Coutinho.

Médico formado, o dr. Hélio, como era chamado, submeteu-se a concurso de Livre Docente. Aprovado, assume as funções de Assistente Efetivo e Chefe de Clínica da Faculdade de Medicina da Bahia.

Em 1942 era criada a Faculdade de Filosofia da Bahia. Não existiam ainda os cursos de Letras, de Ciências Humanas ou de Filosofia; e a Faculdade de Medicina era o grande centro catalisador do humanismo. Ali não se aprendia apenas a curar os males do corpo. No convívio diário com professores e colegas se aprendia sobretudo a bem formar o espírito. Vem do século XIX a tradição que a Bahia formava escritores-médicos e o Recife formava escritores-juristas. E esta tradição afortunada continua pelas primeiras décadas do século XX.

Precisamente aí, em 1942, o poeta Hélio Simões, que ocupava interinamente a cátedra de Neurologia, abandona o exercício da clínica na área da saúde mental, e transfere-se para a Faculdade de Filosofia da recém criada Universidade. A esta altura, como homem de sensibilidade artística e estudioso das ciências da cultura, era também professor da Escola de Belas Artes.

Assumindo a cadeira de Literatura Portuguesa, Hélio Simões procurou completar sua nova formação acadêmica em viagens de estudos a Portugal, à França e a outros países. Entre os portugueses, relacionou-se ou, em alguns casos, privou da amizade de intelectuais como Teixeira de Pascoaes, Hernani Cidade, Aquilino Ribeiro, Vitorino Nemésio e quase uma centena de outros escritores.

Foi através desses contatos que ele propiciou a vinda para a Universidade da Bahia de Adolfo Casais Monteiro e de Eduardo Lourenço, o primeiro para o curso de Letras, o segundo para o de Filosofia. Com humildade, Hélio Simões justificava a sua constante busca de intelectuais portugueses para atuarem na Bahia por uma motivação pessoal, ou como uma forma de aprender com os seus convidados. Assim é que propiciou a Hernani Cidade trabalhar com a defesa do Padre Antonio Vieira perante a demoníaca "Santa Inquisição" e a intelectuais de Geração de Presença a escreverem sobre o ainda pouco conhecido Fernando Pessoa. Vitorino Nemésio aqui publicou o livro Conhecimento de Poesia. Eduardo Lourenço, então professor de filosofia, iniciou a frutífera ponte ligando sua investigação à literatura.

O papel singular desempenhado por Hélio Simões tanto foi reconhecido pelos portugueses, na forma da amizade e da admiração, quanto nas distinções concedidas. Oficial da Ordem Militar de Cristo e, posteriormente, Grande Oficial da Ordem do Infante D. Henrique. Ainda em terras lusitanas, tornou-se membro da Academia de Ciências de Lisboa, do Instituto de Coimbra, do Instituto de Geografia de Lisboa e da Academia Internacional de Cultura Portuguesa.

No nosso país, a Academia Brasileira de Letras concedeu-lhe a Medalha Machado de Assis, mais alta homenagem dessa confraria, por indicação do escritor Jorge Amado, seu antigo rival nos movimentos literários baianos dos fins da década de 20. Uma sólida relação uniu Jorge Amado a Hélio Simões: inicialmente a cordial rivalidade entre os grupos modernos a que pertenceram. Posteriormente, o estreitamento do contato, quando o neurologista Hélio Simões cuidou de Matilde, a primeira esposa do romancista.

Sou testemunha do apreço de Jorge Amado a Hélio Simões. Nos anos 80, o romancista deu-me a incumbência de preparar uma edição da poesia de Hélio Simões, para a qual tomou todas as providências junto a sua editora, a Record, e ao Instituto Nacional do Livro. Passados alguns meses, sem que o trabalho tenha ficado pronto, o escritor Herberto Sales, presidente do Instituto, solicitou o encaminhamento do livro que nunca foi organizado, por modéstia ou desambição do próprio autor. Quando insistíamos com doutor Hélio para que ele franqueasse as cópias dos novos textos que seriam reunidos ao livro dos anos 20, O mar e outros poemas, ele – invariavelmente – prometia para um dia qualquer, desde que mais adiante.

Assim era o antigo professor de neurologia que se fez um dos pioneiros dos estudos portugueses no Brasil. Mais de uma vez ele redarguia que os seus textos, quer fossem de criação ou de análise, não tinham especial importância.

Ainda recordo de uma conferência lida por ele, no Gabinete Português de Leitura, coisa rara, uma vez que as suas intervenções eram quase sempre orais e sustentadas no mais brilhante improviso. Suponho que esta conferência foi escrita, porque se tratava de um diálogo com as tendências ou os métodos da época. Em pleno desvario estruturalista, Hélio Simões valeu-se de Roland Barthes e de alguns outros autores postos em frenética evidência, para fazer uma leitura mais próxima da velha tradição interpretativa francesa, sem excluir as propostas mais consistentes do novo método estrutural. Este empenho conciliador foi uma característica que Hélio Simões trouxe dos seus tempos de juventude e que marcou a sua participação no movimento modernista baiano, como veremos mais adiante.

Dias depois da conferência, escrita numa linguagem fulgurante e fundada em uma leitura de impressionante atualidade, pedimos o texto para publicação e ele simplesmente respondeu: “Vocês levam estas coisas muito a sério.” E o texto nunca foi publicado.

Voltando à formação acadêmica de Hélio Simões e à sua posterior opção pela literatura Portuguesa, surge então uma pergunta: com que credenciais o então médico, professor livre docente e catedrático interino de clínica neurológica assumiu a primeira cátedra de Literatura Portuguesa da Universidade da Bahia e uma das primeiras do Brasil?

Com as credenciais de poeta modernista da geração da revista Arco & Flexa, brilhante geração reunida em torno da revista do mesmo nome. E com as credenciais adquiridas em muitas outras publicações surgidas a partir daí, com as quais colaborou. As credenciais da sensibilidade e do mistério da poesia.


A TOPADA DO MODERNISMO

Em 1928, dois grupos ou duas revistas de tendências modernas e dessemelhantes escandalizaram o conservadorismo baiano de formação parnasiano-simbolista e retardatária ressurreição romântica. Eram: o grupo de Arco & Flexa, inicialmente formado por Hélio Simões, Pinto de Aguiar, Carvalho Filho e Eurico Alves, sob a liderança do também médico e crítico literário Carlos Chiacchio; e, do outro lado, o grupo da Academia dos Rebeldes, integrado por Jorge Amado e outros jovens. Este grupo teve como trincheira a revista Samba, graças à liderança de Pinheiro Viegas, mentor tanto da revista quanto da chamada Academia dos Rebeldes.

Observe-se que os dois grupos de jovens que se propunham a construir a modernidade literária foram buscar apoio em dois velhos intelectuais, de formação finissecular já consolidada, o que vejo como uma conseqüência da natureza esteticamente prudente de ambos. Todos eram jovens, modernos, e... bastante cautelosos. E assim a Bahia se inscreveu, de forma ambígua e, talvez por isso mesmo, pouco estudada, no panorama modernista brasileiro. Para a historiografia literária brasileira, a topada que o modernismo levou na Bahia pesou mais do que os aspectos peculiares da modernidade resultante dos conflitos e contradições locais e nordestinas.

Observe-se, ainda. Justificando a importância do seu grupo para a moderna literatura, Jorge Amado proclama:

“Faço o balanço dos livros publicados pelos Rebeldes, por cada um de nós. A Obra Poética e Iararana, de Sosígenes Costa: sua poesia, nossa glória e nosso orgulho; a obra monumental de Édison Carneiro, pioneiro dos estudos sobre o negro e o folclore, etnólogo eminente, crítico literário, o grande Édison; os Sonetos do Malquerer e os Sonetos do Bem-querer, de Alves Ribeiro, jovem guru que traçou nossos caminhos; os dois livros de contos de Dias da Costa, Canção do Beco, Mirante dos Aflitos; os dois romances de Clóvis Amorim, O Alambique e Massapê; o romance de João Cordeiro devia chamar-se Boca suja, o editor Calvino Filho mudou-lhe o título para Corja; as coletâneas de poemas de Aydano do Couto Ferraz; a de sonetos de Da Costa Andrade; os volumes de Walter da Silveira sobre cinema — some-se com meus livros, tire-se os nove fora, o saldo, creio, é positivo.” (AMADO, 1992, p. 85)

Ora, na território da poesia, tanto a obra simbolista de Sosígenes Costa, marcada pelos exuberantes sonetos pavônicos, quanto os sonetos de Alves Ribeiro e de Da Costa Andrade são computados por Amado como saldo credor desse grupo moderno.

Convém lembrar, então, um velho político da nossa terra, o governador Otávio Mangabeira, que costumava dizer: “Pense em um absurdo.” E logo completava: “Na Bahia já aconteceu.”
Assim, também, foi o nosso modernismo.

A propósito da Academia dos Rebeldes, Hélio Simões, em entrevista à pesquisadora Ívia Alves, afirmou: “Ao mesmo tempo que se publicava Arco & Flexa, saía também a revista Samba. Pode ser considerada uma revista reacionária do ponto de vista literário, ainda publicando sonetos. No entanto, o grupo tinha uma linha política.” (ALVES, 1978, p. 23) – Observa, com propriedade, Hélio Simões.

Diferentes entre si, como se vê nas palavras de um dos seus formadores, os dois grupos modernistas baianos tinham um ponto em comum: a discordância com o modernismo paulista. Ambos os grupos baianos estavam mais próximos do que se fazia em Pernambuco, antecedendo o trabalho de Gilberto Freyre. Sobre o Congresso Regionalista do Recife, Hélio Simões afirmou que, apesar de ter conhecimento das suas propostas, não leu o manifesto de Gilberto Freyre. Como não poderia ter lido porque hoje sabemos que o Manifesto Regionalista não foi escrito nos anos 20, mas somente quando da sua publicação, nos anos 50. O texto conhecido retoma idéias presentes nas intervenções performáticas de Gilberto Freyre, na década 20. (Cf. DIMAS, 2004)

Os poetas de Arco & Flexa tinham contato com o grupo do Recife que editava a revista Cidade. E ainda com os grupos de Festa, no Rio de Janeiro, e de Verde, em Cataguases. Outras afinidades eletivas foram: Jorge de Lima (como Hélio Simões, também médico), que freqüentemente vinha à Bahia a serviço do Lloyd; e, no Ceará, o grupo baiano mantinha contato com a jovem Rachel de Queiroz.

Enquanto o modernismo da Semana de 22 colocava o país em sintonia com a modernidade européia, o Nordeste passava por uma busca de libertação dos modelos europeus, em favor de uma identidade telúrica. Como o conceito de regional se confundia com o pensamento político conservador, alguns intelectuais tentavam contornar esta inconveniência, sustentando sua proposta de modernidade com a de pertencimento ou de identidade. Gilberto Freyre, na contramão do ideário nazista que dominaria a Europa, deslocava o foco da questão racial para a cultural. Convém lembrar que esta busca de identidade, distante da eugenia racial e sustentada em culturas plurais era uma tendência dos anos 20 em outros países da América Latina. A vertente moderna a partir do regional só ganhou dimensões nacionais a partir do regionalismo de 30, nascido no contexto modernista do Nordeste. O mesmo Jorge Amado, que rejeitava as propostas da Semana de 22, chegou à realização estética moderna, capaz de traduzir o seu contexto cultural, com o romance que caracterizou o regionalismo de 30.

Convém acrescentar que a idéia de modernidade artística comprometida com as novas invenções industriais, o fervilhar e a velocidade feérica das grandes cidades, era uma idéia européia que seduzia o espírito industrial paulista, mas não era uma constante no pensamento baiano e do nordeste. Poetas modernos marcados pela força da terra viram algumas marcas dos novos tempos como forma de empobrecimento cultural, ou como aniquilamento de uma visão do paraíso.

Eurico Alves, do grupo Arco & Flexa, na “Elegia a Manuel Bandeira”, convida o poeta a ir a Feira de Santana, onde:

“Os bois escavam o chão para sentir o aroma da terra.”

E Bandeira responde com outro poema, dizendo:

“Não sou mais digno de respirar o ar puro dos currais da roça.”

(BANDEIRA, 2005, p. 85. Ver ambos os poemas no apêndice a este artigo, intitulado "
Manuel Bandeira / Eurico Alves".)

Nos anos 30, "um episódio chamou a atenção para o nome de Eurico Alves: o famoso diálogo poético com Manuel Bandeira", conforme observa Juraci Dórea. "Sem o seu conhecimento, Carvalho Filho datilografou os versos e enviou para Bandeira, que respondeu com outro poema. «Eu estava operado no hospital, quando apareceram Carvalho e Godofredo Filho com a Escusa», registrou Eurico Alves, em carta para sua filha Maria Eugenia Boaventura, datada de 1º de janeiro de 1969." (DÓREA, 2009, p. 129)

Estudando a produção de Eurico Alves na revista quinzenal A Luva, publicada em Salvador, de 1925 a 1932, Monalisa Ferreira toca na questão da convivência harmoniosa entre conservadores e vanguardistas nas páginas dessa publicação:

"Nestas, percebemos um contraponto: de um lado, traços de escritas com mudanças apenas aparentes, como Moema, de Eugênio Gomes, que, embora fosse considerada pelas críticas baiana e carioca como a primeira obra modernista publicada no Estado da Bahia, não apresentava inovações; de outro lado, textos de criação com uma estética visivelmente inventiva, como os poemas e contos de Eurico Alves." (FERREIRA, 2009, p. 172-173)

Mesmo não endossando a visão da estudiosa, quando privilegia a escrita de Eurico Alves, de modo viesado em favor do escritor por ela eleito, não se pode deixar de considerar a diversidade de tendências apontada no seu bem fundamentado artigo.

Mas o que parece um abismo entre o modernismo da Bahia e o de São Paulo pode se restringir ao impacto causado pelas idéias da Semana de 22. Como o progresso de São Paulo trouxe, primeiro, a inquietação, lá o modernismo logo conheceu o deslumbramento pelas novidades vindas de fora; depois trocadas pelo mergulho dos seus escritores nas raízes nacionais, especialmente a partir de 1928.

Voltando à Bahia, o crítico Eugênio Gomes, praticante de poemas de amor surgidos na revista Arco & Flexa, e considerado como autor do primeiro livro modernista editado na Bahia, (CHIACCHIO, 1928) transfere esta primazia a Godofredo Filho. Com efeito, em 1925, Carlos Chiacchio escreveu na sua coluna “Homens e Obras” um comentário saudando a aparição dos poemas modernos de Godofredo Filho (CHIACCHIO, 1928); e em 1928, mesmo ano da publicação na Bahia do livro Moema, de Eugênio Gomes, Godofredo Filho publica no Rio de Janeiro, pela editora Pongetti, o volume Samba Verde. (SEIXAS, 1975, p. 11)

Embora saudado e recebido calorosamente, tanto em São Paulo quanto no Rio, por Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Jayme Ovalle, Augusto Frederico Schmidt, Álvaro Moreyra e outros, Godofredo Filho, inexplicavelmente, recolheu o seu livro.

Na Bahia, o modernismo era caracterizado pelo grupo Arco & Flexa como “tradicionismo dinâmico”, movimento que se propunha a inovar a partir do respeito à tradição. Sobre esta expressão que vai aparecer e dar título ao artigo que serve de manifesto à revista, assinado por Carlos Chiacchio, Hélio Simões esclarece:

“Na Bahia, nós tínhamos fundamentos que não podíamos abandonar de todo. Daí o “Tradicionismo Dinâmico”, porque nós queríamos ir para adiante, mas sem renegar o passado. E não era fazendo tábula rasa como a revista Antropofagia, de Oswald de Andrade, porque, na verdade, nesse primeiro momento é Oswald que tem maior realce, Mário de Andrade apareceu posteriormente.

E prossegue Hélio Simões:

“Eles queriam fazer tábula rasa de tudo. Então inventamos esta expressão de “tradicionismo dinâmico” que era tradição, sim, porque respeitávamos as tradições baianas, mas não ficávamos presos a elas, queríamos sob a base dessa tradição construir o futuro, uma coisa nova, porque também tínhamos a nossa idéia nacionalista.” (Apud ALVES, 1978, p. 119-120)

Como se verá, adiante, o termo “tradicionismo dinâmico” não foi inventado para o grupo, mas tomado de empréstimo ao poeta catalão Gabriel Alomar.

Nesse artigo de abertura da revista Arco & Flexa, Chiacchio esclarece, em tom de manifesto, que toda cultura se vale da tradição para encontrar novos caminhos, se vale do regional para chegar ao universal – “sem perder o contato com a terra”. (CHIACCHIO, 1928, p. 4) Ao afirmar que a cultura universalista refina a sensibilidade local, ele rejeita o apego ao que chama de tradições estáticas, propondo: “Tradições dinâmicas, as tendências modernistas, as únicas dignas de fé.” (Ibidem, p. 6)

"Quanto ao livro de poemas Moema, de Eugênio Gomes, considerado ainda atado aos modelos tradicionais, Hélio Simões sublinha o fato de ter sido Eugênio quem “conseguiu dar a forma ideal do ‘tradicionismo dinâmico’. Foi seu livro que impulsionou o grupo para a produção e publicação de uma revista dentro das idéias de um ‘tradicionismo dinâmico’.” (Apud ALVES, 1978, p. 123)

Na verdade, o pensamento desses jovens conciliadores encontrava eco nas propostas de Carlos Chiacchio, influenciadas pelo poeta e ensaísta catalão Gabriel Alomar Villalonga (1873-1941). Em palestra proferida em 1904, com título “Futurismo”, Alomar dizia que as sociedades registram dois elementos ou duas manifestações capitais “na aparência, de conciliação impossível e paradoxal. Eis estes dois mundos, que com a sua convivência tecem eternamente a História: um deles, com o olhar para trás, alimenta-se da tradição”. (VILLALONGA, 1993, p. 13)

Este elo entre tradição e ruptura não passaria desapercebido a Chiacchio que na série de artigos intitulados “Modernistas e ultra-modernistas”, publicados no jornal A Tarde, de janeiro a março de 1928, e depois reunidos em livro, intitulou um dos textos: “Gabriel Alomar, o criador do verdadeiro futurismo”, em evidente referência a Marinetti que, na sua visita à Bahia, deixou como herança a designação dos ônibus que começavam a chegar à cidade, por coincidência, quando os jornais repercutiam as suas idéias. Se o futurismo de Marinetti não encontrou adeptos entre os modernos escritores baianos, em contrapartida, os ônibus de frente alongada, novidade chegada quando da visita do italiano, receberam seu nome. Até os anos 70 não era comum os baianos viajarem de ônibus. A gente viajava mesmo era de marinete.

E para terminar: Segundo Hélio Simões, o grupo da revista Arco & Flexa, ao procurar Chiacchio, discutiu o objetivo de conciliar a tradição com a inovação, o que, mesmo assim, não evitou que os seus participantes fossem vistos como loucos e inconseqüentes.

Assim, convém relembrar Gregório de Matos: “Isto sois, minha Bahia, isto passa em vosso burgo.”


REFERÊNCIAS


ALVES, Ivia: Arco & Flexa. Contribuição para o estudo do modernismo. Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1978.

AMADO, Jorge: Navegação de cabotagem; apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. Rio de Janeiro, Record, 1992.

ARCO & FLEXA: edição fac-similar, revista literária de 1928/1929, Salvador, Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1978. (n° 1, 66 p.; nº 2/3, 70 p.; nº 4/5, 90 p.)

BANDEIRA, Manuel: Meus poemas preferidos. Rio de Janeiro, Ediouro, 2005, p. 85.

CHIACCHIO, Carlos: Poesia Nova. A Tarde, Salvador, 10 jan. 1925. A nota não vinha assinada, mas como figurava na seção mantida nesse jornal pelo conceituado crítico, a autoria não oferece dúvida.

CHIACCHIO, Carlos: O nosso primeiro livro modernista. A Luva, 5 out. 1928, n. 82.

CHIACCHIO, Carlos: Tradicionismo dinâmico. Arco & Flexa. Mensário de cultura moderna, n. 1, Salvador, nov. 1928.

CHIACCHIO, Carlos: Modernistas e ultra-modernistas. [II] Gabriel Alomar, o criador do verdadeiro futurismo. A Tarde, Salvador, 14 fev. 1928.

DÓREA, Juraci: Diálogo entre Eurico Alves e Manuel Bandeira. In Légua & meia. Revista de literatura e diversidade cultural. Feira de Santana, UEFS, 2009.

DIMAS, Antonio: Um manifesto guloso. In Légua & meia. Revista de literatura e diversidade cultural. Feira de Santana, UEFS, 2004.

FERREIRA, Monalisa Valente: Os dedos de Eurico Alves vestem A Luva (A revista, o modernismo baiano e o poeta dissonante). In BOAVENTURA, Eurico Alves: Cipós verdes. Feira de Santana, UEFS, 2009, p. 171-195.

SEIXAS, Cid. Godofredo Filho: 50 anos de presença literária e do modernismo na Bahia. Salvador, Tribuna da Bahia, 23 mai. 1975.

SEIXAS, Cid: Triste Bahia, oh! Quão dessemelhante. Notas sobre a literatura na Bahia. Salvador, EGBA / Secretaria da Cultura e Turismo, 1996. (Coleção As Letras da Bahia)

SEIXAS, Cid: Sosígenes Costa: Epopéia cabocla do modernismo na Bahia. In PÓLVORA, Hélio (org.): A Sosígenes, com afeto. Salvador, Edições Cidade da Bahia, 2001, p. 75-84.

VILLALONGA, Gabriel Alomar: Futurismo. In Héctor Olea: O futurismo catalão antes do futurismo. São Paulo, Edusp / Giordano, 1993.


APÊNDICE

Ver os poemas citados clicando aqui para acessar o apêndice a este artigo, intitulado "Manuel Bandeira / Eurico Alves".

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Eurico Alves / Manuel Bandeira

O diálogo poético entre Eurico Alves
e Manuel Bandeira, citado do artigo
"Modernismo e tradicionismo", de Cid Seixas,
é aqui retomado através dos poemas
convite e resposta, o primeiro intilulado
"Elegia a Manuel Bandeira"
e o segundo, adequadamente chamado de "Escusa", no qual Bandeira declina do chamado para ir a Feira de Santana
viver a vida na vaquejada.


ELEGIA PARA MANUEL BANDEIRA
Eurico Alves

Estou tão longe da terra e tão perto do céu,
quando venho subir esta serra tão alta...

Serra de José das Itapororocas,
afogada no céu, quando a noite se despe
e crucificada no sol se o dia gargalha.
Estou no recanto da terra onde as mãos de mil virgens
tecem o céu de corolas para meu acalanto.
Perdi completamente a melancolia da cidade
e não tenho tristeza nos olhos
e espalho vibrações da minha força na paisagem.

Os bois escavam o chão para sentir o aroma da terra,
e é como se arranhassem um seio verde, moreno.

Manuel Bandeira, a subida da serra é um plágio da
------ ---------- ------------- ----------- ---------[vida.
Poeta, me dê esta mão tão magra acostumada a bater
------------- ----- --------- --------- ---------[nas teclas
da desumanizada máquina fria
e venha ver a vida da paisagem
onde o sol faz cócegas nos pulmões que passam
e enche a alma de gritos da madrugada.
Não desprezo os montes escalvados
tal o meu romântico homônimo de Guerra Junqueiro.
Bebo leite aromático do candeial em flor
e sorvo a volúpia da manhã na cavalgada.
Visto os couros do vaqueiro
e na corrida do cavalo sinto o chão pequeno para a
--------------------------------------------- [galopada.

Aqui come-se carne cheia de sangue, cheirando a sol.

Que poeta nada! Sou vaqueiro.
Manuel Bandeira, todo tabaréu traz a manhã nascendo nos olhos
e sabe de um grito atemorizar o sol.

Feira de Santana! Alegria!

Alegria nas estradas, que são convites para a vida na
----------------------------------------------[vaquejada,
alegria nos currais de cheiro sadio,
alegria masculina nas vaquejadas, que levam para a
---------------------------------------------------- [vida
e arrastam também para a morte!

Alegria de ser bruto e ter terra nas mãos selvagens!

Que lindo poema cor de mel esta alvorada!

A manhã veio deitar-se sobre o sempre verde.

Manuel Bandeira, dê um pulo a Feira de Santana
e venha comer pirão com carne assada de volta do
------------------------------------------------ [curral
e venha sentir o perfume de eternidade que há nestas
------------------------------------------- [casas de fazenda,
nestes solares que os séculos escondem nos cabelos
------------------------------------ [desnatrados das noites
eternas venha ver como o céu aqui é céu de verdade
e o tabaréu como até se parece com Nosso Senhor.

Eurico Alves e Hélio Simões, poetas da revista Arco & Flexa

E S C U S A

Manuel Bandeira



Eurico Alves, poeta baiano,
Salpicado de orvalho, leite cru e tenro cocô de cabrito,
Sinto muito, mas não posso ir a Feira de Sant’Ana.

Sou poeta da cidade.
Meus pulmões viraram máquinas inumanas e
---------------------[aprenderam a respirar o gás
---------------------[carbônico das salas de cinema.
Como o pão que o diabo amassou.
Bebo leite de lata.
Falo com A., que é ladrão.
Aperto a mão de B., que é assassino.
Há anos que não vejo romper o sol, que não lavo os
-----------------------[olhos nas cores das madrugadas.

Eurico Alves, poeta baiano,
Não sou mais digno de respirar o ar puro dos currais
-----------------------------------------------------[da roça.

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